Em 2001, o jornalista Miguel Francisco Cadete, então no Público, considerava Camané o fadista do novo milénio, mas dizia que o fado era "incapaz de criar um mercado que ultrapassasse os seus círculos mais estritos, obrigando a maioria dos seus autores e artistas a carreiras paralelas". Sete anos depois, o fadista, de 41 anos, lançou Sempre de Mim, que entrou directamente para o primeiro lugar do top, tabela onde se manteve vários meses entre os discos mais vendidos, foi platina e reuniu o consenso da crítica, que o considerou o disco da consagração. De facto, trata-se de um trabalho incontornável. Para quem goste de fado, mas também para todos os que se predisponham a descobri-lo através de uma voz superior. "O fado é uma música de sentimento, mas não de sentimentalismo. O sentimento é mais profundo, demora mais a perceber." – Acha que o fado continua a ser a expressão da alma lusa?Camané – Não. Há pessoas que conhecem, gostam e se identificam muito, outras que estão a começar a identificar-se e as que têm a má sorte de não se identificarem de todo, que acusam o fado de ser lamechas. Acho isso uma má sorte e uma questão de preconceito, porque o fado é uma música de sentimento, mas não de sentimentalismo. E as pessoas facilmente vão para o sentimentalismo, mas rejeitam o sentimento. O sentimento é mais profundo, demora mais a perceber. – O José Mário Branco [produtor de todos os álbuns do fadista] diz que este CD é ‘o Camané de sempre, como nunca’. Foi por essa qualidade que esteve sete anos sem gravar originais?- Houve uma altura em que tive medo de fazer este disco, porque tinha a obsessão de fazer um disco muito bom, que me ultrapassasse… Depois acalmei, fiz uma lista dos poetas que queria cantar, e eram uns 40! [risos] Mas de um dia para o outro mudei completamente a roupa do disco e aconteceu-me uma coisa que nunca me tinha acontecido: cheguei ao Zé Mário Branco com 17 poemas, e disse: ‘São estes.’ E foram esses menos um, que era da Amália. Interpreto-o ao vivo, mas não o gravei, nunca gravei um fado da Amália. "Quando estou a cantar, tenho de me esquecer de mim a ponto de não me exibir, de só passar a palavra, a música, o sentimento." – Acha que é um sacrilégio?- Não seria um sacrilégio, mas sou tão fã da Amália e há coisas que ela fez tão bem que não temos nada a acrescentar-lhes, são as versões definitivas. Mas se um dia sentir que posso dar alguma coisa a um fado dela, fá-lo-ei. – Neste disco, a sua voz está ainda mais profunda e depurada de trejeitos fadísticos…- Se quando cantamos fado vamos para a exibição, as pessoas nem conseguem apanhar a letra nem se identificam com a emoção, só fica o circo. E sempre tive um medo enorme disso. Quando estou a cantar, tenho que me esquecer de mim a ponto de não me exibir, de só passar a palavra, a música e o sentimento. E neste disco não me exibi nada. E é certo que as pessoas que ouvem falam da voz, mas falam essencialmente do sentimento que passa. – De facto, percebe-se que tão importante como a voz é o sentimento que põe numa interpretação…- Porque o mais importante é mesmo passar às pessoas o máximo de emoção, de alma, de sentimento. "É evidente que há uma identificação muito forte com aquilo que canto, mas não tenho necessariamente que estar a falar de mim." – Não tem problema em expor sentimentos quando canta e, no entanto, é uma pessoa muito reservada a falar de si…- Porque os sentimentos que exponho quando canto não são meus. É evidente que há uma identificação muito forte com aquilo que canto, mas não tenho necessariamente que estar a falar de mim, tenho é de encontrar dentro de mim o registo emocional do poema. E tenho de sair de mim o suficiente para não exibir a minha personalidade e conseguir transmitir aquelas emoções. – Ou seja, cria uma personagem que no fundo não é assim tão diferente de si como isso…- Há uma diferença grande, e quem me conhece sabe-o, porque quando me está a ver no palco não me está a ver a mim… Eu sou uma pessoa simples, antivedeta, e quando subo ao palco há uma grande transformação, consigo realmente sair de mim o suficiente para não ser tímido e enfrentar uma plateia. – Como é que conseguiu manter essa humildade depois de atingir o sucesso?- Não sou uma pessoa deslumbrada, mas também não sou muito humilde. Se me tocarem em certos pontos, reajo com arrogância e não com humildade. Sou humilde é quando canto. Acho que o acto mais inteligente de um cantor é conseguir pôr na cabeça que não tem importância nenhuma, o que tem importância é o que está a fazer, e conseguir sair dele próprio o suficiente para conseguir dar. "Tive sempre uma sorte extrema. Sinto-me sempre acompanhado, há sempre qualquer coisa que me puxa para cima." – Cantar é um prazer, um destino ou uma dádiva ao público?- É tudo. É como a vida. É como respirar. O prazer vem com as palmas, vem de se fazer uma coisa de que se gosta e de a dar às pessoas. Mas fazer o que se gosta não quer dizer que não se tenha dores, insegurança, dificuldades… – Os aplausos fazem-lhe falta?- Fazem. São uma forma das pessoas expressarem a sua gratidão por aquilo que nós lhes damos. – O seu percurso tem sido feito com muita calma e não parece ter tido o sucesso como a grande meta. Afinal, demorou 20 anos a aventurar-se num Coliseu em nome próprio…- De facto, não estava à espera de chegar onde cheguei e não seria grave não ter chegado. Quando parti para esta decisão de cantar, tinha 17 anos e não fazia a mínima ideia como é que as coisas iam acontecer. Mas sabia que não ia ser fácil… se bem que desde pequeno sempre achei que as coisas que tinham de ser minhas iam sê-lo. E também tive sempre uma sorte extrema. Sinto-me sempre acompanhado, há sempre qualquer coisa que me puxa para cima, que me faz crescer, que me faz ultrapassar as coisas menos boas que surgem ao longo da vida. – Tem cantado muito no estrangeiro, mas ainda não arriscou grandes salas, como, por exemplo, a Mariza já fez. O que é que falhou?- Não falhou nada, são só processos, pessoas e realidades completamente diferentes. A imagem do fado para um estrangeiro é sempre mais associada às mulheres. Talvez tenha que ver com a Amália, as pessoas lá fora não conheciam um Marceneiro como conheciam a Amália. De qualquer modo, não me sinto nada insatisfeito com a minha carreira no estrangeiro. Aquilo que mereço, tenho, se merecer mais, terei mais… Mas há cedências que não faço, por exemplo, não vou cantar com A ou B só porque é famoso e me pode ajudar… "O negócio da alma não é muito lucrativo, mas vende sempre." – Ou seja, e como já disse em público, a verdade vende mais devagar, mas também vende…- O negócio da alma não é muito lucrativo, mas dá para a vida toda. – Apesar de não rejeitar caminhos novos para o fado, é bastante tradicionalista na abordagem dos temas mais clássicos. E também é bastante conservador na imagem com que se apresenta em palco, sempre de fato escuro…- Não se trata de conservadorismo, porque não sou nada conservador, mas era incapaz de estar num palco e as pessoas estarem a reparar na minha roupa e não no que estou a cantar. Acho que um cantor nem sequer devia ter cara. Aquilo que ele está a fazer é que interessa, não ele. A expressão facial pode ser importante, mas não deve ser mais importante do que a voz. – Sente que a sua carreira lhe controlou a vida ou tem conseguido controlar as duas?- Em muitos aspectos, a carreira controlou a minha vida, mas de forma muito positiva. A carreira cresceu um bocadinho antes de mim e foi ela que me puxou, fez com que percebesse que humanamente tinha de crescer a ponto de estar ao lado daquilo que fazia. A carreira ajudou-me a ser uma pessoa melhor, tornou-me mais responsável, deu um sentido grande à minha vida. "Em muitos aspectos a carreira controlou a minha vida, cresceu um bocadinho antes de mim." – Reconhece que foi uma honra o Nicholas Oulmain tê-lo deixado gravar dois fados inéditos da autoria do pai, o Alain Oulman, que só compôs para a Amália, e com letras do Pedro Homem de Mello?- Sim, claro, ele nunca tinha dado fados do pai a ninguém, e de repente foi ouvir-me várias vezes e decidiu oferecer-mos mesmo sem eu lhos pedir. E quando os ouviu, chorou, essa foi a maior alegria que tive. Sempre quis cantar o Homem de Mello, o David Mourão Ferreira, o Luís Macedo, que foram poetas muito ligados à Amália, mas não queria cantar nada que a Amália tivesse cantado. O Sei de um Rio e o Te Juro, ela se calhar ouviu-os, mas não os cantou, e as gravações que tenho são cantadas pelo Alain Oulman, que tinha uma maneira de cantar muito parecida com a da Amália, a grande referência da vida dele. – Sei de um Rio é uma canção onde letra, voz e música se conjugam de forma sublime…- Sim, é uma canção muito boa. É uma coisa tão simples e há tantas mensagens que as pessoas podem tirar dali… – Parece um homem mais seguro que há dez anos…- Sim, muito mais, mas ainda tenho muito que caminhar, ainda procuro o equilíbrio. Gostaria de ultrapassar os defeitos e conseguir ser uma pessoa melhor. Gostaria de um dia ser um daqueles velhinhos que têm um olhar e um sorriso de criança.
Camané: “Um cantor não devia ter cara, aquilo que está a fazer é que interessa”
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