Chama-se
David João de Carvalho Mourão Ferreira, tem 56 anos, frequentou História na Faculdade de Letras de Lisboa, é filho homónimo de um dos nossos poetas maiores e tem quatro filhos do seu casamento com a jornalista e apresentadora de TV
Margarida Mercês de Mello:
Teresa, 26 anos;
Margarida, 25;
David, 21; e
Tomás, 18. Foi, durante mais de 30 anos, a cara da Valentim de Carvalho, editora discográfica fundada pelo seu tio-avô, e depois da EMI-Valentim de Carvalho, líder de mercado durante anos a fio.
Hoje, tem a sua própria editora de música – Investidas Editoriais -, em que já publicou trabalhos de grande exigência e refinamento de
António Pinho Vargas e da banda de culto Corações de Atum.
Na senda deste novo rumo que tomou, há três anos, acaba de coordenar, com
Frederico Santiago, a edição de luxo comemorativa dos 40 anos do álbum de
Amália
Com que Voz – para muitos o melhor disco da fadista ou mesmo de toda a Música Popular Portuguesa.
David Ferreira conversou com
Rita Ferro no Hotel Avenida Palace, aos Restauradores, onde, em
off, falou de muitas outras coisas: as horas perdidas como mau jogador de ténis, as suas paixões para além da música – a leitura, a pintura, o cinema -, o medo de escrever por causa das inevitáveis comparações com o pai, a lástima por viver num país sem política cultural que sobreviva à voragem dos ciclos eleitorais, a condição de eleitor ‘infiel’ mas empenhado, a defesa intransigente da propriedade intelectual, o culto pelos que, entre a família e os amigos, partiram demasiado cedo – o pai, os avós paternos, o padrinho,
Carlos Paião,
Variações,
Solnado e a própria Amália, entre outros.
Por limitações de espaço, a entrevista girou sobretudo em torno do lançamento deste duplo CD histórico.
Rita Ferro – David: fala-nos desta ‘jóia da coroa’ acabada de lançar…
David Ferreira – É talvez o disco mais importante da história da música portuguesa. Na discografia da Amália este é o "ainda melhor". E, como às vezes sucede com os monumentos, estava a precisar de restauro.
– Foste o director editorial do projecto. Quem o edita?
– O trabalho foi coordenado pelo Frederico Santiago e por mim, e, durante meses, tivemos o
João Brito a fazer muita pesquisa importante. A edição é da I-Play, que teve paciência para esperar enquanto continuávamos a achar que ainda podíamos melhorar alguma coisa.
– Que acrescenta à versão original, de 1970?
– Remasterizámos o álbum original, e isto é importante. Hoje é possível reproduzir a riqueza das gravações antigas – o som agora conseguido é melhor e mais fiel do que o da primeira edição em CD. Depois, incluímos um 2.º disco com gravações inéditas – óptimas! -, metade descobertas pelo Frederico. Finalmente, fizemos um livrinho de 88 páginas com as peripécias da gravação e as suas personagens principais: músicos, editor, técnico de som, os poetas cantados e quem os musicou…
– São tudo músicas do Alain Oulman. Era um homem raro: compositor, pianista, editor perseguido… Por que raio foi preso pela PIDE?
– Aparentemente, ajudou um grupo que conspirava contra o
Salazar; pode até ter-se limitado a albergar alguém, não sei os pormenores. O Alain era um homem excepcional: quando, em 95, a RTP estreou o documentário do
Bruno de Almeida sobre a Amália, o meu pai ligou-me a dizer que tinha chorado de saudades ao rever o Alain, num ensaio filmado pelo
Fonseca e Costa. O Alain tinha morrido cinco anos antes…
– … e tinha musicado muita coisa do teu pai?
– Aí umas oito letras, incluindo o
Abandono,
Maria Lisboa,
Madrugada de Alfama… Todas de forma inesquecível. Era um tipo encantador, de uma extraordinária sensibilidade. A Amália e os poetas que ele musicou nunca foram poupados nos elogios que lhe fizeram. Refiro-me aos vivos… mas podíamos falar da sua ousadia em musicar o
Camões…
– Pois, Amália foi a primeira a cantá-lo. Faço ideia as reacções…
– Um escândalo… às vezes não percebemos a importância que teve a Amália a meter uma corrente de ar por aí adentro!
– E o encontro de Amália com o Oulman? Mágico?
– O Alain surge pela primeira vez no LP do
Busto, em 62, compondo a maioria das músicas. Consegue o milagre: sem perder de vista a tradição do fado, cria algo completamente novo – no início até os próprios guitarristas se queixavam de ter de gravar (diziam eles)
"as óperas"!
– E as gravações? Como correram há 40 anos?
– Dois dias só, um milagre! O homem do som,
Hugo Ribeiro, conta no
booklet a importância de se ter apenas dois músicos, em vez de quatro. E
Joel Pina, um grande músico que acabou por não participar na gravação, explica que esta solução ia sendo preparada por
Fontes Rocha, o guitarrista e arranjador genial do álbum. O resto foi cumplicidade entre eles. E, se calhar, foi Deus…
– Admira-te. Este disco é uma selecção da própria Amália?
– Sim, deve-se à sua inteligência e intuição. Ou talvez a sua intuição fosse uma forma superior de inteligência. Sempre soube escolher bem, e esse dom, que encontramos no melhor
Sinatra, é um traço distintivo dos intérpretes excepcionais.
– Que poetas portugueses constam do reportório?
–
Pedro Homem de Mello,
Alexandre O’Neill e o meu pai, todos eles repetentes em discos da Amália. Pela primeira vez, o
Ary e o
Alegre. A brasileira, porque mais do que a nacionalidade contou aqui a língua portuguesa,
Cecília Meireles. E talvez o Camões:
Com que Voz, que dá o nome ao disco, é um poema quinhentista cuja autoria continua hoje a ser discutida.
– E o encontro Amália-David?
– O meu pai foi criado a desconfiar do fado. Até que em Paris, aos 20 anos, deu consigo a cantarolar um fado e sabia a letra toda… Amália, tinha-a visto no teatro, sentia-se próximo dela sem a conhecer. O passo decisivo foi quando o cunhado, o meu tio
Rui Valentim de Carvalho, os apresentou.
– Já agora: qual era a relação do teu pai com a música?
– Gostava muito – e lemos isso tanto na poesia como na ficção. Dos barrocos italianos em especial. Mas não tinha jeito para cantar: nesse ponto os nossos genes são uma lástima…
– E a tua relação com a música?
– A minha? Quando eu for grande hei-de descobrir se isto é profissão ou vício…
– Voltando ao disco: inclui um CD de bónus, com ‘4 raridades’ e ’15 gravações inéditas’. Queres antecipar-nos emoções?
– Os inéditos revelam-nos uma Amália inquieta, desafiando sempre o que os outros achariam – e com razão! – um trabalho pronto a ser publicado. Ainda hoje a
Lili, que foi secretária da Amália, me ligou a dizer que ficou comovida depois de ouvir este disco. Felizmente, a Amália teve um editor entusiasta, todos os dias eram bons para gravar. [risos]
– Reparei que o livro que acompanha os CD também tem textos reveladores de aspectos menos conhecidos do grande público…
– A pesquisa dos arquivos foi um processo de descoberta que o Frederico descreve. A Margarida (Mercês de Mello) reproduz com muito humor as histórias do Ribeiro, que gravou a Amália durante décadas.
Sara Pereira, directora do Museu do Fado, traça um retrato muito completo do Alain.
Salwa Castelo Branco, presidente do Instituto de Etnomusicologia, analisa com detalhe a arte do Fontes. Eu fiquei com a introdução e as personagens menos conhecidas. E o
Vítor Pavão dos Santos, biógrafo de Amália, assina dois textos comoventes, um sobre os poetas e outro resumindo o que este disco representa.
– E agora tu, David: de que forma saboreias esta tua editora e este teu novo trabalho tão mais ponderado e requintado?
– Ter mais tempo é bom, claro. Agora dedico-me à
slow food… Por outro lado, nem tudo era mau numa grande editora: se o Poder (com letra grande) vicia, poder (o verbo) é bom – e às vezes os pequenos não podem.
– E a política, David? Que tens tu a dizer disto tudo?
– Ah, Rita, logo agora que estávamos tão felizes a falar da Amália…! Olha, fico frustrado ao ouvir tanto discurso clubista quando o mundo desaba à nossa volta. Não é preciso muita reflexão para ver que precisamos de Mercado mas também de Estado – um ou outro à solta dá asneira. É preciso, ao mesmo tempo, produzir riqueza e distribuí-la. Claro que isto provoca tensões contrárias, mas só aparentemente inconciliáveis. Temos de exigir mais de nós próprios, como se fôssemos os construtores das antigas catedrais: tiveram de harmonizar as necessidades de solidez e de luz – no fim inventaram o gótico. Nada mau, pois não?
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico