Foi a 18 de junho de 2010 que José Saramago morreu em Lanzarote. Com o objetivo de que a sua memória se perpetue, a fundação homónima assinala esta segunda-feira o aniversário do seu falecimento com entradas livres na Casa dos Bicos e a leitura de excertos da obra do escritos pela voz de Joana Manuel pelas 18:30 horas.
Nasceu a 16 de novembro de 1922 na Azinhaga, Ribatejo. Foi a voz da gente anónima, simples, real mesmo nas muitas incursões que fez pelo onírico que se levanta na maioria das suas obras. Nunca escondeu o seu ódio pelo lado vil da humanidade. Em contraste amava profundamente o ser humano, sentimento que prolifera em cada um dos seus livros, particularmente na forma como os seus protagonistas encerram quase sempre a sabedoria e a capacidade de transcenderem os mistérios da vida, adquirindo estatura de heróis no silêncio. Sobretudo as mulheres. Capazes de dar vida, de amar incondicionalmente, são sempre elas quem conhece o caminho da redenção e por ele conduzem os seus homens. É o caso de Maria Madalena, a mais pura de todas as pecadoras, em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), o seu livro mais polémico, ou da clarividente mulher do médico de Ensaio sobre a Cegueira (1995).
Mas é em Memorial do Convento, o livro que em 1982 o consagrou definitivamente como um nome grande das nossas letras, que Saramago concebe uma das mais belas figuras femininas da literatura universal: Blimunda.
Nome estranho, poético, inesquecível, o dessa mulher doce, serena, profundamente humana mas quase sobrenatural, que vê através dos outros mas que se preserva no pudor, não devassando a interioridade do seu amado Baltasar. Blimunda é de tal forma marcante que a adaptação de Memorial do Convento a ópera recebeu o seu nome.
Da importância das mulheres na vida do próprio Saramago, no entanto, pouco se sabe, pois o escritor evita referências tanto a Ilda Reis, com quem se casou aos 22 anos e mãe da sua única filha, Violante, nascida em 1947, como à escritora Isabel da Nóbrega, com quem manteve uma relação durante 20 anos.
Em contrapartida, e sobretudo nos últimos anos, o escritor parecia ter necessidade de espalhar aos quatro ventos a felicidade que vivia com a jornalista espanhola Pilar del Rio, que conheceu em 1986 e com quem se casou em 1988. Ao contrário de Blimunda, Pilar é um nome muito comum no país vizinho, mas com muito de simbólico: a jornalista foi, de facto, o pilar na vida do escritor, que aos 64 anos fazia todos os fins de semana, de autocarro, o caminho de Lisboa a Sevilha para se encontrar com ela. “Se tivesse morrido aos 63 anos, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que o serei quando chegar a minha hora“, escreveu Saramago. Violante, a filha, confirma que Pilar “o tornou mais acessível, mais aberto, capaz de derramar os sentimentos e de abandonar a sua habitual atitude de defesa”.
Inteligente, culta, serena e dona de um sorriso cativante, nos primeiros anos Pilar optou por um lugar à sombra.
Mas de repente, a 8 de Outubro de 1998, dia em que foi anunciado que Saramago era o Nobel da Literatura, viu-se atirada para a ribalta. Todos queriam saber mais sobre aquele homem e, como tal, sobre a sua mulher. Feliz por partilhar com ele esses momentos de festa, não se esquivou a fotos, entrevistas, câmaras de televisão, trocando gestos de ternura com o marido para o mundo que o aclamava ver. Mas também, como muitas das heroínas dos seus livros, ajudando-o a suportar o peso da responsabilidade.
José de Sousa Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, filho de José de Sousa, jornaleiro, e de Maria da Piedade, doméstica. Gente pobre, que foge à dureza da labuta no campo trocando a Azinhaga do Ribatejo natal por Lisboa, onde a vida em quartos alugados e águas-furtadas também não lhes sorri. José, que ficou filho único aos dois anos, quando Francisco, o irmão dois anos mais velho, morre de broncopneumonia, revelou desde cedo jeito para as letras, aprendendo a ler e a escrever com facilidade. Maria da Piedade, analfabeta, foi sensível a esse gosto do filho e aos 13 anos comprou-lhe o primeiro livro, O Mistério do Moinho, de J. Jefferson Farjeon.
Um ano antes, Saramago entrara para o Liceu Gil Vicente, mas, em 1934, devido às dificuldades económicas dos pais, muda-se para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde, em 1939, acaba o curso de Serralharia Mecânica, que lhe vale o primeiro emprego nas oficinas do Hospital Civil de Lisboa. O trabalho braçal com que começa a garantir o seu sustento não lhe embota o desejo de aprender, e começa a frequentar, à noite, uma biblioteca, onde lê tudo o que pode.
E em 1942 José já ocupava um cargo nos serviços administrativos do hospital, passando, no ano seguinte, para a Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria da Cerâmica, que trocará pela Companhia de Seguros Previdente em 1950, três anos depois da publicação da sua primeira novela, Terra do Pecado. Em 1959 deixa os trabalhos administrativos, ocupando o lugar de editor literário na Editorial Estúdios Cor, onde já colaborava como produtor.
A partir daí, a sua atividade literária intensifica-se: colabora na revista Seara Nova, escreve crónicas para A Capital e o Jornal do Fundão e em 1972 entra como comentador político para o Diário de Lisboa, onde durante alguns meses coordena o suplemento cultural. Em abril de 1975 é nomeado diretor-adjunto do Diário de Notícias. Membro do Partido Comunista Português desde 1969, após o 25 de novembro é saneado, juntamente com grande parte da redação do DN. Na ocasião, sofre outro rude golpe, pois não recebe qualquer apoio do PCP, que o considera demasiado radical.
É quando fica desempregado que toma a decisão de se dedicar exclusivamente à escrita, garantindo, com traduções, um rendimento fixo.
Em 1976, e muito ao espírito pós revolução, Saramago muda-se para o Lavre, Montemor-o-Novo, onde convive intensamente com os trabalhadores da União Cooperativa de Produção Boa Esperança. Dessa experiência inesquecível nascerá o seu primeiro romance, Levantado do Chão, publicado em 1980, e onde se impõe com o seu estilo inovador, inconfundível e nem sempre bem digerido, mas que lhe vale o Prémio Cidade de Lisboa. Memorial do Convento vem confirmar um Saramago profundamente erudito, mas sempre próximo das origens, crítico de costumes, irónico e mordaz, mas capaz de lirismos comoventes, hiper-realista, mas sempre com um pé no realismo fantástico.
E disso é feita toda a sua ficção, que, além dos aclamados romances (da lista constam ainda O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, Terra do Pecado e O Homem Duplicado), traduzidos um pouco por todo o mundo, inclui contos, novelas e várias peças de teatro, entre elas In Nomine Dei, para a qual Azio Corghi compôs um libreto para ópera, que, com o título Divara, se estreou em Münster, na Alemanha, em 1993.
Distinguida com alguns dos mais importantes prémios literários nacionais e internacionais, da obra de Saramago constam ainda três livros de poesia, um de viagens, Viagem a Portugal, e um diário, que vai já no quarto volume, Cadernos de Lanzarote.
Isto porque, na sequência do veto do Governo à candidatura de Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu, não conseguiu permanecer em Portugal, escolhendo Lanzarote, nas Canárias, para se refugiar, na companhia de Pilar, numa casa a que chamou simplesmente A Casa.
Amado ou odiado, o mais premiado de todos os escritores portugueses criou um estilo único, que lhe valeu o reconhecimento um pouco por todo o mundo. E depois do Nobel tornou-se um herói nacional, mesmo para quem nunca leu uma linha sua.