Nos últimos dois anos, Mísia deambulou entre o céu e o inferno. Provou o amargo da vida, pois foram-lhe diagnosticados dois cancros no espaço de um ano, mas soube usar toda a sua sabedoria para transformar esta viagem ao mais profundo do seu ser numa aprendizagem. Reergueu-se uma mulher diferente, mais consciente de si própria e da verdade da vida, mais destemida. E foi de coração aberto que a cantora, de 63 anos, partilhou esta sua caminhada, muito solitária por opção, com a CARAS, a propósito do seu mais recente disco, Pura Vida (Banda Sonora), que é um espelho do que aprendeu ao enfrentar a morte.
– Este “Pura Vida” é mesmo um canto à vida…
Mísia – Digamos que cantando fado sempre andei a cantar a vida, o destino, pelo que não é uma coisa nova. O que foi surpreendente, diferente e, por um lado, enriquecedor foram os últimos dois anos da minha vida, que estão refletidos no repertório, nos arranjos e nos poemas.
– Dois anos muito difíceis…
– Vamos só um bocadinho atrás: não está no meu caráter contribuir para grandes títulos – não critico quem o faz –, e ponderei muito se devia falar sobre o que me aconteceu. Durante dois anos não falei. Fiz concertos, entrevistas, tudo, de sorriso de orelha a orelha, sem falar sobre o que estava a viver. Mas pensei que seria pouco coerente falar deste disco sem revelar a energia que o inspirou. Tive duas situações oncológicas muito graves, com duas operações e dois períodos de seis meses de quimioterapia. E, sem querer ser um exemplo, espero que esta minha partilha sirva de ajuda a alguém. Porque é desagradável perceber que as pessoas começam a achar que a doença nos define e que somos só a doença. Na altura só pensei que tinha de continuar a fazer a minha vida, não tinha deixado de ser quem era e, enquanto pudesse, fazia. A vida tem mais força do que tudo o resto. E só percebemos a força que temos quando precisamos dela. Este período foi o meu calvário, foi um inferno. Depois do primeiro cancro, surge-me outro um ano e três meses depois… Mas, ao mesmo tempo, tenho que dizer que vi coisas lindíssimas, que estive atenta a coisas a que não estava antes, a milagres quotidianos, e consegui conservar esse estado de fascínio, de encantamento, pelas coisas pequenas. E ficamos mais fortes, perdemos muitos medos. Isso foi também o que me deu força para fazer um disco de fado tradicional, mas muito inesperado para mim.
– Sente este disco como uma espécie de catarse?
– Sim. O disco é uma espécie de catarse e gravá-lo foi uma espécie de catarse. Fui para estúdio quando acabei a segunda quimioterapia, portanto ficava muito cansada, coisa que me irritava. E há um dos temas em que canto: “Renascerei, renascerei, renascerei, os deuses vão dizer: voltou?” Esta letra foi o ponto mais catártico do disco. E nele quis juntar a guitarra portuguesa e a guitarra elétrica, mas numa versão pouco amável, porque é a parte da doença, do terror, da dor, do medo, é a parte negra. E a guitarra portuguesa é o lado espiritual, poético, belo, portanto é o céu e o inferno.
– Após os cancros, que mulher é que canta neste disco?
– Durante anos fiz um grande pecado em relação a mim própria e é a primeira vez que confesso isto: amputei-me artisticamente, porque o meu desejo de pertença a Portugal e ao fado extravasava tudo o que eu era. Sabendo dançar, sabendo fazer teatro, decidi ser fadista, e chegava ao palco, dizia boa noite, anunciava os poetas e ia-me embora, completamente hierática. Julgavam-me distante, mas para mim era uma forma de respeito pelo fado, não fossem as pessoas achar que eu não era fadista. Fiz isso à espera de ser aceite, e não era por aí o caminho. Na verdade, sempre fui considerada alternativa. E hoje sou uma mulher diferente, não preciso de pertencer a nenhum género musical, porque perdi o medo. Aliás, quando se morre duas vezes, perde-se o medo. Depois do que passei, tenho de ser honesta e tenho de mostrar à doença que depois dela consigo ser maravilhosa.
– Como é que se olha de frente para a morte?
– Com um grande sorriso. É a fotografia da capa do meu disco: olha-se com um grande sorriso, com uma coroa de espinhos do Valentim Quaresma e com o ar de quem pregou uma partida à morte. Isto é um jogo, e nós perdemos logo ao nascer.
– E que olhar devolve hoje à vida?
– A vida são tantas coisas… O facto de ter passado dois anos a deitar-me e a acordar com um cancro tornou-me muito atenta à beleza da vida. O meu médico oncologista diz que sou muito poética, mas até nos momentos terríveis há coisas extremamente belas, que nos ligam a este mistério da vida e da morte. Uma das coisas que este período mudou foi a sensação quase de milagre quando estou em palco. É a perceção real de que superei mas de que pode voltar sempre. É preciso mesmo tirar o melhor do pior. Andei a escarafunchar na morte, e se não visse a beleza e a poesia de estar viva já tinha partido para outro lugar.
– Cantando há 25 anos o destino, sente que tem conseguido agarrar o seu?
– Sinto que estou muito mais perto de ser aquela pessoa que teria sido se não fosse filha do meu pai e da minha mãe. Ou seja, a pessoa que teria sido sem sofrer os traumas todos que sofri. Essa pessoa mais imaculada, menos magoada, menos traumatizada, que todos nós podemos ser. Cada vez estou mais perto dessa essência.