Na pitoresca Malveira da Serra, em Alcabideche, Cascais, o arquiteto Pedro Quintela recuperou uma casa agrícola simples, sólida e robusta, outrora em ruínas, com pátio e terraço abertos para a paisagem. Fez o que mais gosta de fazer: sonhar, antes de lançar mãos à obra, conservar paredes de pedra e resgatar o espírito tradicional do lugar. “Gosto imenso de viajar. E conforme vou viajando, vou pingando amores pela arquitetura. Já fiz várias voltas a Portugal e em cada aldeia tenho um amor, uma joia. Entro lá dentro, normalmente são ruínas, não têm pessoas, e começo a fazer grandes ‘viagens’. Tive muitos professores teóricos, soberbos, mas os meus professores práticos são as ruínas. Entro nelas, viajo, aprendo tudo o que tenho a aprender, esquisso, sinto, fotografo e continuo, de uma em uma”, revela.
A história da habitação, hoje com uma área útil total de cerca de 100m, distribuídos por sala, com mezanino, cozinha, dois quartos e um espaço polivalente, estes apoiados por casa de banho, parece fruto do acaso ou, então, partida do destino: “Tinha a possibilidade de investir numa casa e pensei: por que não esta? Fui conhecendo os vizinhos. Vinha aqui várias vezes. Acabei por não resistir a perguntar quem era o dono e disseram-me que morava numa aldeia aqui perto. Nesse próprio dia, ao final de tarde, fui até lá e, quando cheguei, encontrei uma única pessoa que estava a passear na rua. Encostei, perguntei-lhe por quem eu procurava e… era o próprio”, diz, rindo. “Tive sorte porque eram só dois herdeiros. Fizeram-me um preço e eu avancei com o projeto”.
A recuperação do edifício fez-se com recurso a mão-de-obra local e a bons materiais de construção, a maioria recolhida nas próprias ruínas e aplicada na reconstrução, mas nem sempre devolvidos ao seu local original. “Foi quase um puzzle. Tirar daqui e colocar ali, para aproveitar ao máximo o que havia de bom, e não haver desperdício!” O seu método de trabalho é, garante-nos, intuitivo, respeitando o espaço e optando sempre por intervir o mínimo possível, ou seja, privilegiando a recuperação e restauração de técnicas e materiais construtivos existentes (sendo a implementação de novos materiais estruturada de forma a que estes se coadunem com os antigos sem os ofuscar e assumindo claramente que são novos). “Falo muito com as obras, mais facilmente até do que com pessoas. As obras é que são os meus clientes, as obras é que me dizem o que é que querem que eu faça com elas… E, depois, com muito diálogo e momentos íntimos, entre a obra e eu, acontecem as coisas”.
A paixão do arquiteto e a sua relação com as ruínas, aliadas à paisagem envolvente e, mais uma vez, ao espírito do lugar, encarregam-se do resto, da reinterpretação construtiva do existente. “A casa está bastante integrada, com alguma ajuda minha, mas principalmente com a ajuda de quem a projetou originalmente. As paredes-mestras são originais. Só deitei abaixo o que estava dentro, assim como o telhado. Comecei a trabalhar a partir da côdea. Mas a pele da casa estava cá!”, observa, elogiando o trabalho dos ‘antigos’: “Estes, sim, sabiam trabalhar a arquitetura, sabiam perfeitamente porque é que a casa está como está, nesta direção, toda virada a sul, protegida da nortada, que aqui é bastante agressiva… Todo este saber está ligado à vida das pessoas que viviam cá antigamente”.
O resultado está à vista: um novo espaço de vida, com a alma e todo o simbolismo da casa de campo original, resistente às condições climáticas adversas do local e apta a corresponder às exigências de conforto contemporâneas. “Luto pelo conceito holístico da coisa. É como o corpo humano: se faltar um dedo, já não está completo. Então, temos que ter tanto pormenor no dedo ou na unha como na cabeça. Essa é a minha abordagem! Temos que começar bem do menos zero. E se a entrega for sempre igual, o todo resultará igualmente bem… Não há uma coisa que considere o pormenor da casa, porque toda ela em si é resultante de infinitos pormenores”.
Pormenores, esses, que se estendem à composição dos interiores, num misto de tradicional e rústico contemporâneo. “Conciliar a estética arquitetónica com a decoração foi um processo muito natural, que foi acontecendo. Na verdade, muitos dos móveis que estão cá em casa nasceram durante a obra e depois deu-se apenas um toque para ficarem com um ar mais bonitinho. As peças foram aparecendo. Tal como apareceu esta obra acabada a partir de uma ruína…”, aponta. “Gosto de valorizar as coisas que socialmente se é quase proibido de olhar para elas. Estou a falar de lixos e ferrugens. Gosto de ir buscá-los e transformá-los em algo bonito”.
Três anos de obras depois e dois de vivência, o arquiteto está pronto para novos desafios. “Sinto que estou a mimar demasiado a casa. E, tal como em todas as relações, mimar demais é uma chatice, para os dois lados, para quem mima e é mimado. Estou pronto para sair. Sinto que, de certa forma, o meu trabalho está completo. O que tinha que fazer está feito”, garante.
Decoração: O espírito do lugar na Malveira da Serra
O arquiteto Pedro Quintela reabilitou uma casa em ruínas, na Malveira da Serra, mantendo-se fiel à identidade da construção original.