Dez anos depois da sua morte – que se assinalam a 6 de Outubro -, Amália continua a ser a única artista portuguesa a merecer, de pleno direito, o estatuto de diva. Dotada de uma voz incomum que, com alguma falsa modéstia, atribuía a Deus, foi também prendada com uma inteligência e uma sensibilidade que lhe permitiram perceber – num tempo em que o
marketing era ainda uma ciência incipiente -, que para atingir o estrelato era necessário saber usar a imagem. E
Amália, que teve também a sorte de nascer com um palminho de cara e um corpo bem feito, serviu-se habilmente da imagem na promoção da sua carreira.
Se dúvidas houvesse a esse respeito, bastaria olhar para as imagens que dela captaram os mais famosos fotógrafos de artistas da sua época,
Silva Nogueira e
Manuel Alves
Sampaio, para as desfazer. São do primeiro as imagens que ilustram estas páginas, uma pequena amostra do que encontrará no livro que faz parte da colecção
Amália Sempre, que poderá ser adquirida com a CARAS (30 de Setembro e 7 e 14 de Outubro), a
Visão (1, 8 e 15 de Outubro), o
Expresso (3, 10 e 17 de Outubro) ou, na totalidade, com a
Blitz de Novembro.
Coordenada pelo jornalista
Miguel Cadete,
publisher da Impresa Publishing,
Amália Sempre inclui ainda um CD com 17 sucessos da fadista e o DVD
Estranha Forma de Vida, documentário assinado por
Bruno de Almeida com locução de Joaquim
de Almeida.
Ao estilo de Hollywood
Quando fotografa
Amália pela primeira vez, em 1942,
Silva Nogueira já é um profissional de prestígio, associado a artistas como
António Silva ou
Ercília Costa. Amália, essa, é ainda uma jovem principiante insegura (a sua estreia como fadista ocorrera apenas três anos antes). Perante as câmaras, a sua atitude é tímida e reservada – como o são as virginais roupas que usa, com um toque folclórico de fadista de raça – e os olhares dolorosamente melancólicos.
A evolução, no entanto, é rápida. No início da década de 50, o animal de palco já se soltara, como se pode perceber pelos retratos que seleccionámos, todos feitos entre 39 e 53 (Silva Nogueira só fotografou a fadista até 54). Num belíssimo preto e branco, Amália surge a "fazer-se" à foto sem inibições, olhando a objectiva de frente, com um sorriso seguro e não isento de sensualidade. E se na atitude a diferença é abissal, o mesmo se pode dizer do guardaroupa escolhido para estas sessões.Já nada faz lembrar a modesta rapariguinha com toque castiço. Amália tornou-se uma mulher do mundo, que exibe a sua silhueta elegante em vestidos caicai cingidos ao corpo, bem ao estilo de Hollywood. Tinha nascido uma estrela.
Elegância inteligente
Filha do povo,
Amália tinha uma elegância inata e um sentido do belo apurado e até revolucionário. Que se revelaram, primeiro que tudo, a cantar, pois soube trabalhar e modular a voz de modo a evitar os trinados de gosto duvidoso que vulgarizam o fado. Depois, no indiscutível tacto que orientou a escolha dos autores, muitos dos quais nomes de vulto da nossa poesia, e na abordagem sensível, cheia de alma, mas nunca lamechas, com que os cantou. E, claro está, na sua postura em palco e fora dele, de uma modernidade estética até antes nunca conseguida por uma fadista.
Amália Rebordão Rodrigues começou por ser uma rapariga como as suas vizinhas de bairro, mas transformou-se numa mulher com estilo e cuja presença não passava despercebida onde quer que estivesse. Uma vez mais, graças à sua inteligência. Verdadeira esponja, Amália absorvia tudo o que via e rapidamente adoptava novos comportamentos e posturas. E, da mesma forma como aprendeu a estar em sociedade ou a falar várias línguas, aprendeu a maquilhar-se de maneira a valorizar o seu rosto de traços algo rudes, mas de uma inegável beleza latina, e a vestir-se com uma sobriedade requintada, mas atenta à moda. Os seus fatos de cantar são ricos, mas quase sempre em preto integral, pois, como a própria defendia, o preto e o branco ficam sempre bem, mas o preto tem mais que ver com o espírito do fado.
Estranha forma de vida
Uma diva que se preze tem de ser teatral. E a teatralidade foi, sem dúvida, uma das características que a nossa diva mais cultivou. Só alguém camaleónico como
Amália conseguia criar uma personagem tão convincente como… Amália. Por isso, é difícil saber quem foi realmente esta mulher, que nos anos áureos da sua carreira se obrigou a viver segundo moldes bem diferentes daqueles em que foi criada.
A fadista, que cresceu quase analfabeta e nunca escondeu as suas origens humildes, adquiriu ao longo dos anos um considerável património de refinamento que a transformou numa verdadeira senhora. Mas a transição de um meio pobre e sem demasiados espartilhos comportamentais para o da alta-burguesia, em que viria a mover-se a partir do momento em que atingiu o êxito, não foi feita sem custos. Ao enveredar por esse caminho, Amália pagou o preço de não poder, nunca, ser genuína em público. Ou seja, negou toda a sua herança cultural para se enformar numa que lhe era estranha.
Fê-lo com tanto talento – curiosamente, nos vários papéis que desempenhou no cinema não conseguiu ser tão boa actriz como na vida -, que ela própria parece ter-se esquecido de quem era. De tal modo que nos últimos anos, quando a voragem da carreira acalmou e se viu forçada a enfrentar alguns dos seus monstros (nomeadamente o facto de não ser imortal), caiu numa espiral algo depressiva, que, entre outras tristezas, lhe trouxe longas noites de insónia. Mas, por essa época, a opinião dos outros já pouco lhe interessava e, cansada de retrair o seu lado mais popular, deixou-o vir à superfície. A mais genuína das suas facetas terá mesmo sido a da Amália final, de braços abertos em direcção ao céu, a estalar os dedos e a agradecer os aplausos dos fãs com os seus famosos
"Obrigada!"