Acredita que o destino já vem traçado. E o seu, por muitas voltas que desse, tinha de desembocar no fado. Com uma carreira em construção, iniciada há oito anos, mas da qual já fazem parte sonhos cumpridos, prémios merecidos e reconhecimento internacional,
Mariza é hoje uma das embaixatrizes da cultura portuguesa no mundo. Depois de já ter apresentado o seu mais recente CD, Terra, em muitos palcos internacionais de prestígio, a fadista canta-o nos Coliseus do Porto (29 e 30 de Outubro) e de Lisboa (31 de Outubro e 1 de Novembro). E agora, silêncio, que também se vai falar do fado.
– Fazer um Coliseu é sempre encarado como uma prova de fogo? Ou o facto de já ter cantado em grande salas por todo o mundo diminui essa carga?
Mariza – Todas as salas são de enorme responsabilidade. Até cantar numa taberna o é. Cantar, para mim, implica sempre responsabilidade e profissionalismo, mesmo que esteja entre amigos. Tenho sempre em mente que quando vou cantar tenho de fazer o meu melhor.
– Em Portugal, a crítica nem sempre foi simpática para si, mas agora já não se pode dizer o mesmo…
– Não se pode agradar a toda a gente… E vou dizer uma grande maldade: de há uns tempos para cá deixei de ler críticas, não só em Portugal, mas em qualquer parte do mundo. Umas, porque posso achar que a forma como me tratam é exagerada e pode fazer o meu ego disparar e eu ficar a achar que sou a melhor do mundo; outras, porque posso achar que as coisas que estão a dizer não são as melhores…
– É dos artistas que mais tem levado a nossa cultura fora de portas. Isso dá-lhe uma maior responsabilidade?
– Para mim é um orgulho enorme mostrar a cultura portuguesa a pessoas que não a conhecem ou que têm uma noção muito pálida daquilo que somos. A música que faço hoje, tentando respeitar as bases, as tradições da nossa cultura, já tem um cunho muito pessoal, mas não deixo de cantar em português, não deixo de cantar os grandes poetas portugueses. E levar essa cultura a outras gentes é sempre uma grande responsabilidade. Mas é com enorme prazer que o faço, cada vez mais apaixonada pelo que faço.
– É cantora- residente do Carnegie Hall de Nova Iorque, já actuou na Ópera de Sydney, no Hollywood Ball, no Royal Albert Hall de Londres, na Ópera de Frankfurt e, mais recentemente, estreou-se no Hibiyca Public Hall, no Japão. Qual é o palco que lhe falta pisar?
– Já fiz quase todos os palcos que sonhava pisar… Há, isso sim, alguém para quem gostaria de cantar:
Nelson Mandela. Tenho uma enorme admiração por ele, é um ser humano com uma história de vida incrível.
– Há quem lhe chame a nova diva do fado…
– Não gosto da palavra! Percebo por que é que se usa, porque vem de divina, mas não encaixo nesse perfil.
– E não tem tiques nem manias de diva?
– No meu camarim não gosto que haja comida, só gosto que haja chá. Se isso for um tique de diva, então tenho! Não exijo mais nada. Quase não quero que dêem conta que eu lá estou e não chateio ninguém.
– No entanto, em palco tem uma imagem trabalhada – nomeadamente no que diz respeito ao guarda-roupa -, onde cabe cor, ousadia, espectáculo, que é de uma grande estrela…
– [risos] Estou é a morrer de medo e as pessoas é que não sabem. Quanto à imagem, não é trabalhada. Quando recomecei a cantar fado, tive a sorte de ter como amigos o
Eduardo Beauté, que me pôs o cabelo como eu o queria, adoro cabelos curtos, e o
João Rolo, que tem um ateliê cheio de vestidos e me deixa escolher os que quero… Ainda hoje são eles que tratam da minha imagem.
– Quer dizer que ao fim de oito anos ainda tem medo de enfrentar o público?
– Se não tivesse medo, isto que faço não teria lógica nenhuma. Tem que se ter medo, respeito. No dia em que não sentir nervosismo ao entrar em palco, já não vale a pena cantar.
– Em palco parece quase encarnar uma personagem…
– Se não formos pessoas puras em cima do palco, as pessoas percebem que há uma personagem e que aquilo é falso. E isso não resulta! Temos de trabalhar com a verdade. O que as pessoas vêem no palco é o que eu sou. Tem que ver com o que me rodeia, com o que tenho absorvido nos últimos dez anos. Não consigo fabricar uma personagem, embora fosse melhor que o soubesse fazer, pois talvez me resguardasse mais e não mostrasse tanto os meus sentimentos…
– Mostra os sentimentos ao ponto de chorar em palco?
– A prova disso está num DVD… Não gosto que isso aconteça, mas a emoção do momento, a forma carinhosa como o público olha para mim, como me recebe, como está atento à minha música, é inacreditável, comovente…
– No dia-a-dia, a sua imagem é igualmente cuidada, mas mais discreta. Isso revela alguma timidez que em palco contraria?
– O palco merece tudo! E como gosto dos vestidos grandes, de princesa, uso-os. No dia-a-dia adoro jeans, ténis, sapatos rasos. Vou sempre às mesmas lojas, onde as pessoas já me conhecem e sabem do que gosto. Não gosto de experimentar roupa, nesse aspecto acho que não sou muito feminina. Mas assumo que tenho uma tara por sapatos!
– O seu cabelo curto e louro revela alguma rebeldia escondida por trás desse ar doce que transmite?
– Era maria-rapaz, mas nunca tive um acto de rebeldia. Desde criança que queria ter o cabelo curto, mas a minha mãe não me deixava, porque adorava pôr-me ganchos. E o meu cabelo todo encaracolado dava imenso trabalho. O meu pai acordava e em dez minutos estava pronto e eu chorava quase todos os dias porque tinha de me pentear e fazer tranças. Por isso, dizia muitas vezes que quando fosse grande iria ter o cabelo curto… E agora, em 15 minutos, estou pronta!
– E deixar os estudos não terá sido um acto de rebeldia? Ou foi apenas a única saída para se poder dedicar à música?
– Não foi um acto de rebeldia, foi uma procura de felicidade. O ser humano tem de lutar pela felicidade. Queria ser feliz, e só o conseguia ser a cantar. Porque viver é muito bom, mesmo se de vez em quando a vida nos prega partidas.
– Mas era má aluna?
– Não, era uma aluna medíocre… [risos] Estudava no
Gil Vicente e descia um cano que lá havia para ir para o pátio cantar. A música era mais forte do que as aulas! A estudar eu era muito infeliz, por isso não valia a pena insistir. Tinha uns 17 anos quando desisti da escola.
– Os seus pais não ficaram preocupados com isso?
– A minha mãe ficou um pouco receosa, mas o meu pai, como percebeu que era mesmo o que eu queria fazer, apoiou-me. Ele adoraria ter sido actor, cantor, mas a vida não lho proporcionou…
– E hoje como é que eles encaram a sua carreira?
– Não lhe chamo carreira, chamo-lhe percurso. Como muita gente, acho que eles também não percebem a dimensão da maior parte das coisas que me acontecem.
– Aos 13 anos tirou um curso de manequim. Porque a fascinava o mundo da moda ou para ver se interrompia os estudos mais cedo?
– Foi por incentivo de uns amigos. Como sou muito curiosa, e também como o meu pai embarca sempre nas minhas conversas, lá fui eu. E foi muito bom ter feito esse curso, porque percebi que não era aquilo que eu queria e, ao mesmo tempo, deu-me outra forma de estar…
– Parece ser uma mulher segura, com metas bem traçadas. É assim mesmo, ou ainda tem algumas incertezas?
– E quem não tem incertezas? Quem é que é completamente seguro? Não conheço ninguém! Temos sempre receios, medos. Segura, sou só no meu trabalho, sou até impiedosa. Digo tudo o que penso e gosto que façam o mesmo comigo. Sou frontal e honesta. Mas também sei pedir desculpa quando erro.
– Na vida pessoal, também tem essa frontalidade?
– Sim. Não aguento ir para casa a pensar que deveria ter dito alguma coisa e não disse…
– Disse em tempos que a sua vida pessoal era a música. Ainda pensa assim? Isso não implica abdicar demasiado de alguns projectos pessoais que poderiam ser importantes, como por exemplo ter filhos?
– A minha vida pessoal chama-se música. De resto, as coisas acontecem se tiverem de acontecer. Mas neste momento o meu objectivo é a música. Não esperei chegar até aqui, nunca procurei nada e já aconteceu tanta coisa! Mas tudo é possível…
– Essa dedicação total à profissão não implica uma factura muito alta?
– A minha família paga uma factura muito alta…
– A música proporcionou-lhe um convite para ser embaixadora de Boa Vontade da UNICEF. Esse é um dos lados gratificantes de ser artista?
– Esse é o lado gratificante de se ser pessoa, termos oportunidade, com o pouco que temos, de dar um sorriso a quem precisa.