(Entrevista de Violante Saramago à CARAS, publicada a 11 Março 2009)
A sua voz fica embargada cada vez que fala dos pais, a gravadora e pintora
Ilda Reis e o escritor
José Saramago. Por eles sente uma enorme admiração e respeito, mas também muitas saudades. A mãe morreu em 1998, meses antes do pai receber o Nobel da Literatura. Saramago, como é sabido, vive em Lanzarote e, apesar de ficar apenas a uma hora de distância da Madeira, a filha está com ele muito menos do que desejaria. Filha única,
Violante Saramago Matos, de 61 anos, ainda hoje lamenta a separação dos pais, que coincidiu com o seu próprio casamento, em 1970, com
Danilo Matos. Bióloga e mãe de dois filhos,
Ana, de 37 anos, engenheira informática e dona da Galeria das Salgadeiras, no Bairro Alto, e
Tiago, de 25 anos, recém l i c e n c i a d o em Biologia, Violante recebeu a CARAS em sua casa, no Funchal, de onde o seu marido é natural e para onde foi morar há 28 anos.
Foi nesta ilha que no pós-25 de Abril recomeçou a sua vida, dedicando-se ao ensino e ocupando os cargos de vereadora, deputada à Assembleia Legislativa. Neste momento, trabalha na gestão de Recursos Humanos da Secretaria do Ambiente.
– O casamento dos seus pais terminou ao fim de 26 anos e, pelo que percebi, não foi uma separação amigável…
Violante S.M.: Não há separações que não deixem marca. Depois, o tempo vai resolvendo, ou não… No caso dos meus pais, o tempo resolveu, e resolveu bem, de tal forma que, quando a minha mãe morreu, o meu pai veio de propósito de Lanzarote para estar no seu funeral. Foi uma situação complicada, mas não há divórcios fáceis… Há toda uma vida que de repente balança e há filhos que têm dificuldade em compreender, porque temos sempre a ilusão de que as coisas são eternas e, às vezes, não o são.
– Alguma vez os seus pais deixaram transparecer que a relação iria terminar?
– Acho que as coisas não se passaram de maneira diferente da maioria dos divórcios, embora não houvesse ali violência. Havia duas pessoas que esgotaram aquele tipo de relação. As coisas hoje têm um impacto completamente diferente, um divórcio não tem o peso que tinha naquela altura. Mas aconteceu, os meus pais aguentaram-se e cada um organizou e estruturou a vida como achou que era melhor: o meu pai recomeçou a escrever e a minha mãe passou a gravar e a pintar com mais intensidade, e acabaram por se tornar, de facto, amigos. Se uma relação tinha acabado, outra estava solidamente instalada.
– Mas antes do divórcio o seu pai não escrevia?
– O primeiro livro do meu pai é do ano em que nasci, 47, mas depois fez um enorme interregno. Que eu me lembre, o meu pai escrevia crónicas e pequenos artigos para a A Capital e Diário de Notícias, depois fazia traduções e era também responsável pelas edições da Estúdios COR, portanto, havia já uma grande ligação com a literatura. Aliás, costumo dizer que não sei viver numa casa que não tenha livros e quadros, porque foram sempre dois instrumentos da Cultura muito presentes. Quando ia a casa de pessoas que não os tinham, estranhava, quando, afinal de contas, o estranho era terem-nos.
– E em sua casa existem muitos livros e quadros?
– Existem, sim. E felizmente nós conseguimos inspirar, educar, habituar os nossos filhos exactamente nesta preocupação da leitura, do quadro, da arte, do cinema, procurando dar-lhes uma educação que reflecte a educação que eu, em particular, recebi.
– E a sua filha herdou mesmo esse interesse pela arte…
– Sim, mas curiosamente nada nos fazia prever que a Ana se pudesse transformar numa galerista. Todos nós temos muita pena que a minha mãe não tenha podido assistir à opção de vida da neta, mas a vida prega partidas.
– A sua mãe morreu meses antes do seu pai ter recebido o Nobel da Literatura. Não chegou a assistir à entrega do prémio…
– Não, foi outra partida da vida. Não chegou a tempo. [emociona-se]
– Como é que, sendo filha de dois artistas, acaba por seguir a área de Ciências?
– Costumo dizer que me saiu a pior das curvas: de um lado tenho a curva da minha mãe, do outro a do meu pai, e eu tenho que marcar a minha presença ao meio delas. Isto quer dizer que, durante muitos anos, para um certo grupo de amigos da minha mãe eu era a filha da Ilda Reis. Para os amigos do meu pai, eu era a filha do Saramago. E foi preciso que a Violante encontrasse o seu espaço. Com todo o orgulho e honra que tenho em ser filha dos meus pais, também tenho que ser eu, para minha realização pessoal, sem pôr em causa quem sou e de quem sou filha. Eu podia encostar-me aos nomes dos meus pais, mas não consigo fazê-lo. Acho que tenho o dever de, por um lado, ser coerente comigo, procurar passar os dias de forma séria, mas também não queria que os meus pais me dissessem: ‘Que comportamento indigno que a minha filha teve.’ Da mesma maneira que para mim é importante que tanto o meu marido como os meus filhos tenham o mesmo tipo de apreciação. Isto só se consegue quando alguém é alguém, e não quando se é a mulher de, a mãe de ou a filha de… Claro que encontrar o ponto entre as curvas demorou tempo.
– Foi por essa razão que durante muitos anos não usou o apelido Saramago?
– Hoje o peso do nome dos pais tem uma abordagem bastante diferente daquela que tinha quando me casei, há 39 anos. Poder casar sem passar a ter o nome do marido era coisa que não se fazia. Aliás, se não me engano, nem sequer era possível. Casei-me em 1970, a sociedade era o que era, e, naturalmente, esta expressão do relacionamento homem/mulher não existia, não estava em cima da mesa para discussão. Portanto, passei naturalmente a ser Violante Matos. Até que o senhor meu pai me ‘puxou as orelhas’ e me perguntou: ‘Então não tens pai?’
– Mostrou-lhe que sentiria orgulho se passasse a usar o apelido dele…
– Exatamente. Achei que realmente lhe devia isso, porque a verdade é que as coisas não são como há 39 anos. Há atitudes que se calhar vale a pena mudar, porque acabam por ser um pouco mais condizentes com o que nós pensamos. Passei a usar Violante Saramago Matos quer na minha vida pessoal quer profissional.
– O que é que herdou da sua mãe e do seu pai?
– É difícil de dizer, porque não herdei só de um, mas de ambos. No que respeita à minha mãe, herdei sobretudo uma sensibilidade e emotividade muito grandes, embora o meu pai, que aparenta ser uma pessoa distante, fria, altiva, seja um poço de sensibilidade. Aquela é, no fundo, a forma dele se defender. Depois, herdei dele o gosto pelo rigor e pela verdade das coisas, embora a minha mãe também fosse uma pessoa extraordinariamente justa. Resumindo, acho que herdei a sensibilidade do lado da minha mãe e esse rigor e permanente procura de chamar as coisas pelos nomes que caracteriza o meu pai: ele não diz branco se está a pensar ou a sentir preto.
– Como é hoje a relação com o seu pai? Encontram-se com frequência?
– Vamos muito a Lanzarote, às vezes também nos encontramos em Lisboa, mas não são encontros de quem vive na mesma cidade. Eu vivo aqui, ele vive em Lanzarote…
– É curioso que tanto o pai como a filha vivam numa ilha…
– E eu garanto-lhe que ia a correr para Lanzarote se pudesse! É verdade, mas cada um tem a sua vida organizada, todos trabalhamos e, por isso, também não podemos dispor do nosso tempo para irmos uma semana para Lanzarote matar saudades. Vamos falando por telefone, trocamos uns mails e, quando é possível, encontramo-nos. O que lhe posso dizer é que aproveitamos qualquer pretexto para ir para ao pé dele. Não o vejo nem falo com ele com a frequência que gostaria, mas é a possível.
– Apanhou um pequeno susto quando ele esteve internado?
– Não foi pequeno… [emociona-se]. Foi muitíssimo complicado, até porque a minha mãe tinha adoecido e morrido na época de Natal e, a certa altura, eu estava a ver o filme outra vez. Felizmente, o meu pai foi-se aguentando, mas houve momentos complicados, de grande ansiedade. Eu estava cheia de medo. A verdade é que depois cumpriu-se aquilo que os médicos desejavam, que era ele ter resistência suficiente para que os antibióticos tivessem tempo de atuar. E ele hoje está francamente bem.
– Tem uma grande admiração pelo trabalho e pela personalidade do seu pai…
– Evidentemente que tenho um orgulho enorme. Confesso que tenho alguma dificuldade em encontrar um adjetivo para expressar ou qualificar as coisas que me tocam muito. Se calhar, até com um pouco de contenção e retenção de emoções, direi que é um imenso gosto, orgulho, prazer ser filha dele.
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*Este texto foi escrito nos termos do novo acordo ortográfico.