Maria José Costa Félix é jornalista, autora de diversos títulos – alguns publicados no Brasil – e uma das astrólogas mais solicitadas do País. Licenciada em Filologia Germânica e com frequência do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), participou em dois governos; num, como secretária do secretário de Estado, noutro, como adjunta do primeiro-ministro. Trabalhou ainda num grupo de investigação num hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. É colaboradora regular da imprensa e tem protagonizado uma série de programas de TV.
Mãe de cinco filhos e avó de 13 netos, já se viu confrontada com situações clínicas de grande gravidade, tendo sofrido recentemente a perda devastadora de um genro, o que lhe inspirou um novo título:
Morrer e Renascer. Foi, pois, sobre a morte – essa fatalidade que, para tantos, está longe de representar um fim – e a forma como cada um a encara, que
Rita Ferro quis indagá-la, destrinçando os diferentes tipos de golpe: morte fulminante por doença ou sinistro, brutal para a família, mas que sonega à vítima qualquer hipótese de balanço ou preparação, poupando-a, por outro lado, a um sofrimento arrastado; a tortura das doenças prolongadas, degenerativas e incapacitantes, face às quais se levantam questões sensíveis associadas à eutanásia e à morte assistida; e, finalmente, a partida precoce, aprazada por uma doença fatal, que submete a vítima a um
countdown cruel que, aos de fora, parece impossível de aguentar, mas que, surpreendentemente,
Pedro d’Orey, genro da autora, sublimou de forma exemplar. Lúcida, sincera e desarmantemente simples, Maria José Costa Félix recebeu Rita Ferro na sua casa, em Lisboa, para, redentoramente, opor a eternidade à ideia de finitude.
– Sendo a morte a maior certeza da vida e das primeiras noções que absorvemos na infância, por que nos revolta sempre?
Maria José C. Félix – Porque nada há de mais difícil do que aceitar que somos limitados e que tudo nesta vida é efémero. Porque nos agarramos ao que consideramos nosso, lutando para não o perder, convencidos de que podemos controlar o que quer que seja. Porque, perante a impotência, queremos sempre perceber o porquê do que nos acontece, mas nem sempre com humildade: endeusamo-nos e, em vez de abrirmos e expandirmos o coração, fechamo-lo.
– Não será a fé em Deus, mas o estofo pessoal de cada um, que determina uma melhor aceitação da morte – concorda? Pergunto, porque já vi ateus e crentes reagirem bem ou mal, indiferenciadamente…
– O estofo pessoal de cada um contribui sem dúvida para uma boa aceitação da morte. No entanto, acho que, sem uma atitude interior de abertura a algo superior, a um poder maior do que o nosso, a uma fé em Deus – que passa por um acreditar em nós mesmos para além do nosso ego e implica um não-endeusamento pessoal -, podemos conformar-nos com ela, mas surgir-nos-á sempre como um absurdo.
– Sendo o cancro uma roleta-russa, de que modo poderemos amortecer o choque de um diagnóstico como o que teve o seu genro?
– A atitude de entrega total que ele teve foi precisamente o que lhe deu o poder imenso, a força incrível que revelou e lhe permitiu continuar a fazer a vida normal, bem-disposto e sem revolta, até ao último minuto da sua vida terrena. E isso constituiu para todos nós um exemplo de que, face a um diagnóstico de doença grave, todos podemos encará-lo como um convite a prestarmos mais atenção ao que existe de essencial na nossa vida, relativizando tudo o resto. Como um alerta para faltas que só então consciencializamos ou conflitos menores que não mereçam desgaste.
– Sei que é simultaneamente cristã e astróloga, sem conflitos. Morre-se porque ‘é vontade de Deus’ ou por desígnio dos astros?
– Deus nunca nos chama para a morte, mas sim para a vida – para a verdadeira vida, que não é esta aqui neste mundo, mas para a que começa precisamente quando dela nos libertamos, ou seja, por ocasião da nossa morte física. E os astros não nos obrigam seja ao que for. Apenas nos esclarecem sobre os recursos que temos e que podemos gerir melhor. Ajudam-nos a tomar consciência de que somos seres livres a quem é proposta uma viagem no tempo. Eu acredito numa ordem superior que nos comanda. Que há um desígnio mais alto que nos fez vir a este mundo num determinado momento da história da Humanidade – cada um com uma missão específica. Para mim é Deus. Mas há quem lhe dê outros nomes. E a astrologia nada tem que ver com futurologia nem adivinhações! A sua função é revelar-nos a forma como o espírito divino se manifesta através de nós. Nada de diferente do que aquilo que a
Bíblia nos diz através da conhecida parábola dos talentos. E posso dizer que é mesmo aquilo que mais me tem ajudado. A mim e, por meu intermédio, a milhares de pessoas: tomar consciência de quem sou, como melhor posso aproveitar as minhas potencialidades e o que ando a fazer neste mundo.
– Não partilha, portanto, da visão determinista do destino ou na de alguns ‘colegas’ seus que defendem que ‘está tudo escrito nos astros’?
– Não partilho de todo! Claro que o posicionamento dos astros revela determinadas tendências – que uns podem ter e outros não. Mas é também o que acontece geneticamente: ter pais inteligentes pode facilitar-nos a vida em determinados campos… Nascer no Ocidente não é o mesmo do que nascer no Oriente… Vir ao mundo no séc. XX é diferente do que no séc. XII. Ou seja: todos temos condicionamentos de várias ordens. Não somos é obrigatoriamente uma coisa e não outra. Somos seres livres, podemos optar, ou seríamos marionetas… Daí que nunca se possa dizer que um horóscopo é ‘bom’ ou ‘mau’. Repito: os astros não nos dizem o que somos, mas aquilo que podemos ser. E, como sabe, assim como há pessoas que nascem de pais muito dotados intelectualmente e que não vão a lugar nenhum, outros há que, filhos de pais menos evoluídos, chegam longe. Da mesma forma, também há pessoas cujos horóscopos revelam muitas capacidades e não as aproveitam devidamente, e outras a quem sucede o contrário.
– Há uma atitude que me espanta sempre e se observa em todos os perfis: culpar-se Deus pela morte de um filho ou de alguém próximo –
"Porquê a mim?" – e romper-se com a Igreja logo a seguir à perda. A que obedecerá uma atitude primária destas, tantas vezes em pessoas evoluídas?
– Ser-se instruído e inteligente não nos impede de ter atitudes primárias como essa. Evoluir não é encher a cabeça com pensamentos brilhantes, saber e fazer muitas coisas importantes, mas sim abrir o coração ao amor, assumir o que sentimos, as nossas fragilidades e inseguranças, os nossos medos. Culpar alguém – a nós, inclusivamente – afasta-nos do amor, da vida, de Deus, que nos ama incondicionalmente e sempre espera por nós, façamos nós o que fizermos. Não nos obriga, porém, a ser perfeitos nem mesmo melhores do que aquilo que em cada momento somos. Simplesmente nos convida a aceitar com humildade aquilo que, de momento, conseguimos ser.
– O seu título
Morrer e Renascer pode ter duas leituras: a de que a morte faculta aos ‘condenados’, ou aos que já experienciaram grandes sustos de saúde, uma hipótese de redenção que os restantes mortais não têm, ou a de que, depois da morte, nos espera uma segunda vida. Acredita em ambas?
– Acredito que para todos nós a morte se prepara em vida e que a verdadeira vida só depois da morte se vive. A meta final desta nossa vida é a morte. Por isso, quanto melhor vivermos as diversas mortes que ao longo da vida nos aparecerem pela frente, mais em paz viveremos essa meta final. Face a qualquer perda, somos convidados a acreditar que podemos sempre descobrir a vida que fica em nós, para lá daquilo que desapareceu.
– Não terá sido o caso do seu genro, mas reparo que os que sabem que vão morrer aparentam pactuar com um certo discurso ideofugitivo ou pretensamente animador dos outros:
"Não vais nada morrer, daqui a uns anos ainda te vais rir disto!" Acha que, por parte do doente terminal, é uma defesa, auto-sugestão ou ainda esperança?
– Acho que é uma mistura disso tudo. Mesmo quando ao nível mental o negamos, há sempre em nós um desejo de imortalidade… Fazemos, por isso, de conta que está nas nossas mãos esticar os fios intrincados através dos quais a nossa história de vida é escrita, substituindo-os continuamente por outros mais resistentes… Por muito que, ao longo da vida, nos preparemos para o momento da nossa morte, no fundo continua a haver um medo desse confronto com o desconhecido.
– E esses que, de fora, colaboram nessa batota? A verdade, perante uma pessoa que sabemos que partirá antes de nós, causa-nos um mal-estar insuportável. É como se a naturalidade se tornasse impossível…
– Nem sempre é uma batota… Para quem tem ainda um corpo, tem de ser estranha a sensação de que alguém que tantas vezes ali esteve connosco nunca mais ali estará… E tem forçosamente de começar por haver em nós uma brecha que a nível emocional nos desequilibra… A pouco e pouco, porém, podemos deixar de nos entregar ao desespero ou à revolta. Aprender a viver é aprender a amar. O que implica aceitar que existe a perda, a morte, mas também acreditar que há algo para lá do que perdemos. Ou seja, que não há perdas absolutas. Uma morte traz sempre em si a esperança de uma nova vida. Qualquer fim é sempre o princípio de algo novo. Eu não tenho dúvidas de que a fé move montanhas!
– Para terminar: enquanto a ouvia, pensava que a Maria José fala do amor quase como se fosse uma coisa facultativa. A aprendizagem pode durar uma vida inteira e a reciprocidade não chegar a acontecer. Na vida bruta que levamos, amar é um heroísmo. Quem não conheceu o amor pode não saber transmiti-lo, e por aí adiante…
– Sem dúvida. Mas eu refiro-me ao Amor com maiúscula. Àquele que é muito mais do que uma emoção. Nesse sentido, aprender a amar é como subir uma escada com curvas que nos vai conduzindo a um encontro connosco mesmos e, simultaneamente, à percepção de uma força que, embora pareça vir de fora, nos vem de dentro – sendo por isso indestrutível. Nesse sentido, Amor não é apenas Tu e Eu. É algo que está para lá das emoções. Onde já não há luta nem a necessidade de fusão total com alguém. Algo que está para lá da paixão, do sonho, do desejo. Nesse sentido, amar é simplesmente abrir a alma.
*Nota: Por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.