Chama-se Carlos Pedro Barahona Fernandes Possollo de Carvalho, mas é conhecido internacionalmente como
Carlos Barahona Possollo. Há muito que a crítica se rendeu não só à mestria com que pinta, mas também à forma como combina a realidade com a transcendência, a mitologia com a profanação, o físico com o metafísico, e tudo isto eivado de um olímpico desprezo pelas convenções e de uma provocação sistemática à burguesia hipócrita. Muitos consideram-no um génio, mas sorri ao epíteto:
"Deixem-se disso!"
Solteiro, nasceu em Lisboa em 1967 e é licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde veio a ser assistente. Frequentou o curso de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, de 1986 a 1989. Colaborou com os Correios de Portugal na produção de muitos originais para a emissão de selos, destacando-se a série comemorativa do 5.º Centenário da Viagem de Vasco de Gama. Colaborou nos nove primeiros números da edição portuguesa do
National Geographic Magazine. Tem exposto um pouco por todo o lado e encontra-se representado na colecção do Banco de Portugal e na dos museus de Setúbal, da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, das Comunicações, da U.C.C.L.A. e da Casa Branca (Washington), bem como em colecções particulares de grande exigência. Inaugura uma exposição a 19 de Maio, na Galleria Paul-Georg Deutsch, mesmo no coração de Roma, a dois passos da Igreja de St.º António dos Portugueses. É informal, desafectado, meigo e tranquilo, e, ao mesmo tempo, sábio, irreverente e mordaz. Recebeu-nos em casa para uma curta mas generosa conversa em torno da sua arte, do seu pensamento e dos seus projectos.
– Com que idade fizeste o teu primeiro risco reconhecido? Foi em casa ou na escola?
– Os riscos feitos na infância não anunciavam predestinações óbvias. Só quando comecei a formação efectiva em desenho e pintura, por volta dos 16, senti que devia insistir nesta aprendizagem e correr o "risco" para ver até onde me levaria.
– [risos] Tens genes artísticos na família?
– Certificados, muito distantes; nada de tão flagrante como os da calvície. [risos]
– Quem foram os teus mestres e quais as tuas grandes referências contemporâneas?
– Iniciei o estudo do desenho com
Lima de Freitas e, já nas Belas-Artes, tive aulas com o pintor chinês
Xiao Hong, a quem devo a maior parte do que sei fazer em pintura. Além destes que conheci vivos, tento aprender algo copiando pinturas de
Singer-Sargent,
Klimt,
Colum-bano e
Tiepolo. Na contemporaneidade admiro muito
Lucian Freud,
Paula Rego,
Phil Hale e
Roberto Ferri; e na cena nacional
João Pedro Vale,
Rui Effe,
Pedro Cabrita Reis e
Bela Silva.
– Alguém te ‘descobriu’, ou seja, tiveste um anjo bom que te outorgou a obra dizendo
"este homem tem génio"?
– O Prof.
Fernando Baptista Pereira foi quem me abriu a primeira porta, determinando a forma como o meu trabalho decorreu até agora em Portugal. Ele identificou os fundamentos que definiriam a minha identidade como pintor. No passado ano, o galerista suíço
Paul-Georg Deutsch, que já acompanhava o meu percurso há três anos, decidiu ser meu
marchand. É a seu convite que vou expor agora em Roma.
– Fala-nos um pouco do teu percurso.
– Quis ser, por ordem, paleontólogo, egiptólogo, psiquiatra, arquitecto e pintor. Ah! Ah! Esta lista explica muito do meu trabalho, não te parece? Uma vez aterrado nas Belas-Artes completei o curso de pintura e logo comecei a expor.
– As tuas obras estão impregnadas de mitologia, História, sexo e transgressão. Há uma explicação freudiana para isso ou são exercícios de pura liberdade e exploração?
– Tem total explicação freudiana. A verdade é que a pintura anula todas as limitações que a vida concreta impõe à nossa criatividade. À partida tudo é possível. A única barreira é a nossa capacidade de execução, que pode ser sempre colocada mais adiante com esforço e disciplina. E, depois, toda a estética romântica do belo/horrível passou carta branca aos criativos, de modo que tudo se lhes perdoa se for belamente executado. Mais, o meu voyeurismo tem fácil expressão num trabalho que comunica pela visão. "Por favor não toque nos modelos", isto é, nas pinturas!
– Quem ‘responsabilizas’ por esse imaginário tão complexo e metafórico? A tua infância, as tuas leituras?
– Penso que tivesse sido a companhia constante de adultos, especialmente dos familiares mais velhos com quem convivi muito. Talvez se note no meu trabalho a falta de um universo pueril. Em criança, a crueldade dos meus semelhantes sempre me aterrorizou. Os coleguinhas de escola revelaram-me, em miniatura, aquilo que o mundo, de facto, é. Os adultos eram bem mais civilizados; davam-me livros e levavam-me a lugares seguros e calmos, como os museus.
– Além de pintar também escreves: é um outro heterónimo ou é a mesma pessoa? Já te li e descobri ‘obsessões’ comuns…
– Não sei se um livro de contos basta para dizer que alguém escreve. Foi uma experiência muito divertida e conheci uma equipa editorial deliciosa, na Bico de Pena. Fui buscar um apelido de uma bisavó polaca (que tive pena de ver extinto) e assinei Gorski. Já tinha algum
curriculum como pintor e decidi não utilizar o mesmo nome para não parecer apenas o capricho de mais um espertinho que se quer exibir.
– Diz tu, prefiro: de que fala esse teu livro?
–
As Lágrimas de Bibi Zanussi começa com a história de um travesti e destrambelha-se por muitas cenas do pitoresco
gay ‘portuga’. Tentei que se percebesse algo de frágil e humano, por trás da aparente originalidade; porque as pessoas são todas muito parecidas umas com as outras; os nossos medos resumem-se sempre a uma curta lista, comum a todos.
– Fala-nos desta tua exposição em Roma, que já está a dar que falar.– Porque o espaço, a Galleria Paul-Georg Deutsch, é também antiquário, as minhas pinturas serão enquadradas por antiguidades, o que pode fazer sobressair alguns dos temas mais arriscados, envolvidos num ambiente de requinte, adequado apenas no aspecto formal.
– Tem um tema abrangente ou não te comprometeste?
– O título será
O Pintor e a Luz, o que se liga facilmente a todo o meu género de trabalho, onde há uma preocupação constante com o efeito cénico e simbólico da Luz. Sob esta dita Luz dispõem-se muitas arrobas de carne, de vários sexos, em várias poses, desempenhando papéis mitológicos.
– Na tua última exposição, na Sala do Veado, na Academia das Ciências de Lisboa, também havia um quadro muito forte, de cariz sexual, que estava arredado dos outros, atrás de um painel. Diverte-te chocar?
– Divertir não será a palavra… Não resisto à tentação de chocar, dentro de uma medida cientificamente controlada, para apenas ficar eu mesmo chocado com as reacções do público, muito mais perverso que eu, que prova constantemente a ingenuidade dos meus intentos. É fascinante ver como o chocador se torna na coisa chocada.
– Fala-me da tua paixão pelo Egipto, tão óbvia nos teus quadros…
– Não te consigo explicar uma paixão, o Egipto é a minha pátria. Um pouco como
Dorothy Louise Eady, que para lá regressou e acabou cicerone dos templos de Abydos.
–
"O artista que troca uma hora de trabalho por uma hora de conversa com um amigo sabe que está a sacrificar uma realidade a algo que não existe." Revês-te nesta opinião de Proust?
– Não sei. É verdade que as pinturas, surgidas de um território imaterial, são algo fundamental e quase absoluto por oposição a tudo o que se desenrola no quotidiano e desaparece sem deixar rasto. Mesmo assim, não acredito em nada que não se possa partilhar e desfrutar com os outros. Um universo fechado, assim masturbatório, afigura-se como algo triste, não achas? Além do abcesso pulmonar, o Marcel deve ter morrido de solidão. [risos]
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico