Quem não a reconhece não está atento:
Teolinda Gersão é considerada das maiores escritoras portuguesas vivas e o seu talento foi já reconhecido pelo público, os pares e a crítica mais exigente. Nasceu em Coimbra, estudou em Coimbra e Berlim, viveu dois anos em São Paulo, Brasil, e passou algum tempo na antiga Lourenço Marques, onde decorre um dos seus romances,
A Árvores das Palavras. Ganhou o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, o Grande Prémio do Conto da APE, o Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários e por duas vezes o prémio de ficção do PEN Club. O livro de contos
A Mulher que Prendeu a Chuva ganhou o Prémio Máxima de Literatura e o Prémio da Fundação Inês de Castro, em 2008.
Tem duas novelas passadas a teatro, uma encenada por
Jorge Listopad, outra, por
João Brites. A versão teatral do seu romance
A Casa da Cabeça de Cavalo ganhou o Grande Prémio no Festival Internacional de Teatro de Bucareste em 2005. Foi escritora-residente na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 2004, e está traduzida em onze línguas.Teolinda Gersão é casada, tem duas filhas,
Maria Luís e
Sílvia, e dois netos,
Pedro e
Duarte. Recebeu-nos na sua casa do Chiado, com uma vista deslumbrante sobre o Tejo, para nos falar do seu último romance,
A Cidade de Ulisses, uma história de amor passada em Lisboa.
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– Queria começar por lhe dar os parabéns, Teolinda. Este livro foi a melhor visita guiada que fiz a Lisboa, sem ter de aturar cicerones pseudo eruditos…
– Ainda bem que gostou, Rita, porque escrevemos naturalmente para chegarmos até às pessoas… E tem razão quanto à "visita guiada",
A Cidade de Ulisses é um livro que passeia por Lisboa. Embora seja sobretudo uma história de amor.
– E, apesar de tudo, o mistério de Lisboa não é tão indecifrável como o do amor…
– Concordo, o amor não se explica, tem as suas leis próprias, a sua ‘química’, a sua magia. Por que razão amamos uma pessoa e não outra? No fundo, nunca saberemos.
– Ulisses nunca passou por Lisboa. Sentimos uma espécie de dor quando nos lembra, pois desde sempre acarinhámos o mito…
– É verdade, o mito é-nos tão familiar que quase esquecemos que Ulisses nunca existiu, é apenas a personagem central da
Odisseia de
Homero. E Lisboa, fundada pelo herói de um livro, ganha por esse facto uma aura literária, liga-se a histórias que nunca vão desaparecer, porque os mitos nunca passam.
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– Interessante. No seu livro, o lugar de Penélope pode ser ocupado por um homem. Um homem que também espera e espera também em vão. Uma sugestão revolucionária!
– Pois é, Ulisses pode trocar de lugar com Penélope. Porque os homens, tal como as mulheres, também são capazes de esperar o regresso do ser amado, que os abandonou, e desejar que o amor recomece…
– É também um grande livro sobre o desencontro. Como se os verdadeiros romances adquirissem a sua maior expressão no Antes e no Depois…
– É um livro sobre o desencontro, mas sobretudo sobre o encontro, porque tem um final feliz. Os seres humanos são complexos, as relações não são fáceis, mas o amor é possível e acontece. No entanto exige maturidade e crescimento interior.
A Cidade de Ulisses é também a história dessa aprendizagem…
– Sei que viveu largos anos numa outra casa, mais afastada da Lisboa antiga. Esta que tem agora, no coração do Chiado e do Tejo, influenciou necessariamente este livro. A musa estava aqui, na sua varanda?
– Pensei muito neste livro a olhar o Tejo. E a pensar no grande mar, e no mundo, até onde o Tejo nos leva, no mundo de que, ao longo da vida, acabei por conhecer uma boa parte. E deambulei muito por Lisboa, e li muito sobre Lisboa, por causa deste livro. Mas todo esse trabalho me deu um imenso prazer. Não nasci aqui, mas é aqui que vivo, por escolha. A minha cidade é Lisboa.
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– Diz uma das suas personagens que criar é necessariamente
"um exercício de poder sobre o espectador":
"fasciná-lo, subjugá-lo, convencê-lo", etc. Sente isso como escritora?
– Sinto isso, absolutamente. Como leitora, e como escritora. Enquanto leitora, quando pego num livro espero que ele me ‘agarre’ e me leve consigo. O prazer está em deixar-me ir, para um mundo diferente do meu. Enquanto escritora o meu objectivo é também ‘agarrar’ o leitor, fazê-lo entrar num mundo diferente, até à última página. A escrita é um jogo de sedução, esperamos que o leitor se deixe seduzir e entre no jogo. Felizes aqueles para quem ler é apaixonante: onde quer que estejam, nunca estarão sozinhos.
– Todo o leitor guarda dentro de si uma passagem preferida. A minha foi a de espreitar o que um homem pode sentir perante o abandono irreversível de uma mulher. Geralmente, o homem não analisa com este pormenor. Senti-o como um presente que nos oferece, a nós, mulheres…
– Deu-me prazer vestir a pele de uma personagem masculina, ver o mundo a partir da sua perspectiva. Aceitei esse desafio, que fiz a mim mesma. Acho que consegui e que a personagem, Paulo Vaz, adquire uma grande sabedoria ao longo do livro, olha com lucidez a vida, os homens, as mulheres, a sua própria história. E é por isso que o livro tem um final feliz. Acredito que, para muitas mulheres, ele pode ser um homem apaixonante.
– O pano de fundo do romance é uma exposição de artes plásticas que encomendam ao protagonista, dedicada a Lisboa. Qual a diferença entre a pintura e a literatura, em termos de narrativa? O que tem uma que falta à outra?
– As artes visuais têm possibilidades que a literatura não possui: oferecem-se no imediato, no instante em que olhamos. Em poucos segundos, se tivermos capacidade para captá-lo, um quadro desvenda-nos a sua essência. A literatura, pelo contrário, exige tempo, os olhos têm de seguir as linhas, de virar as páginas. E é gradualmente que uma imagem surge no nosso cérebro. Mas também essa imagem é de algum modo visual. Um livro faz-nos ver alguma coisa que não sabíamos, mas tem a ver connosco e com a nossa vida.
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– Registei uma frase do protagonista, por ser uma verdade brutal:
"O amor não dura. Um dia acordamos e o encanto desfez-se. O mundo voltou a ser o que era. Ou seja, mais ou menos nada." Acredito que o amor não dura, mas que o mundo nunca mais volta a ser o que era. E a Teolinda?
– Creio que todos pensamos isso, enquanto não surge ‘aquela’ pessoa que torna o amor durável, ou inesquecível, alguém que nos faz rever o que nos parecia indiscutível… [risos]
– No livro, lembra Novalis a dizer qualquer coisa como: "Para onde vamos? Sempre para casa." Que casa será esta?
– Pode ser a casa-lugar-do-amor. Ou pode ser o mundo, que deveria ser uma casa para todos os humanos, mas está muito longe de ser esse lugar habitável. Milhões de pessoas vivem em condições miseráveis, degradantes, e não podemos ignorar nem esquecer esse facto, que nos entra pelos olhos dentro e nos afecta.
– Doeu-me uma outra passagem sobre as mulheres que vivem atrás de máscaras:
"Eram essas que vinham ter comigo. Para que eu juntasse os pedaços"…
– As mulheres também esperam isso dos homens, que sejam um ombro amigo, um apoio, nos momentos em que elas se estilhaçam. Os seres humanos têm obviamente um lado muito frágil, quer sejam homens ou mulheres…
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico