Numa entrevista publicada na CARAS em maio de 2006, Miguel Portas abriu as portas do seu lado mais pessoal, falando dos filhos, das paixões da sua vida, do gosto pela política e até dos irmãos, Paulo e Catarina Portas. Uma conversa com a jornalista Maria Inês de Almeida, que agora voltamos a publicar na íntegra.
Miguel Portas morreu hoje, dia 24 de abril, por volta das 18h00, em Antuérpia, depois de dois anos a lutar contra um cancro no pulmão.
Talvez porque a casa onde morava, na infância, tivesse
vista para um quartel de bombeiros, o filho mais velho do arquitecto Nuno Portas
e da economista Helena Sacadura Cabral queria ser bombeiro. Miguel Portas, de 47 anos, acabou por tirar Economia,
trabalhando na função pública enquanto estudava (tratava de boletins de registo
de importações). Além disso, foi animador cultural em zona rural, na Câmara de
Ourique, foi agente de desenvolvimento local no Algarve, trabalhou na Câmara de
Lisboa, no cruzamento das áreas da cultura e do urbanismo, e tem no currículo 15
anos de jornalismo escrito, considerando-se jornalista de profissão. O
eurodeputado do Bloco de Esquerda, que ainda na clandestinidade aderiu ao PCP,
reconhece que tem a possibilidade de poder escolher o que faz. “Vejo a política
como uma comissão de serviços, não dependo dela. Posso ser jornalista,
economista ou fazer qualquer outra coisa. Não é a política que toma conta de
mim, sou eu que decido o grau de intensidade e profissionalismo que lhe
dedico.Não fazer política tem muito a ver com a busca de equilíbrio. Nalguns
períodos foi a inquietação que me moveu, hoje procuro mais o equilíbrio e o
amadurecimento.” Apaixonado por viagens, Miguel
Portas acaba de concluir a segunda série documental que fez com Camilo
Azevedo, desta feita sobre o Mediterrâneo, e tem dois livros em preparação,
cujos temas giram à volta do Mediterrâneo, das religiões e das viagens. Foi na
Praia das Maçãs, onde Miguel tem casa, que decorreu esta entrevista, na
companhia dos seus dois filhos, Frederico e André, fruto
de duas relações duradouras.
Depois da separação dos seus pais, cedo optou por viver com
o seu pai…
Miguel Portas – Foi uma opção em
que a minha opinião contou bastante, mas que obviamente era impossível sem o
acordo dos meus pais. É natural que um filho, na infância, possa identificar-se
mais com o pai do que com a mãe. Se calhar foi isso que aconteceu. Mas tenho
excelentes relações com ambos.
Sente essa mesma identificação dos seus filhos consigo?
Não
quero filhos que se identifiquem comigo, mas filhos que se encontrem consigo
mesmos. O meu esforço como pai é nesse sentido, que eles possam ir escolhendo e
abrindo caminho.
E como gere a ausência desde que está em Bruxelas? Sente
muitas saudades deles?
Sinto. Estou com eles, porventura, dois fins-de-semana
por mês, o que é pouco. Isso coloca-me o problema de usar o tempo com qualidade
e disponibilidade. E nem sempre consigo.
O que considera tempo com qualidade?
É
ter disponibilidade de atenção para eles. E isso nem sempre é possível, porque
trago trabalho para o fim-de-semana e, às vezes, é mais fácil pô-los a jogar
computador enquanto eu faço outra coisa. Mas se calhar já foi pior, apesar do
tempo apertado, hoje tenho mais alguma disponibilidade.
Joga computador com eles ou continua a preferir o desporto?
Joguei vários desportos federados. No Liceu Passos Manuel jogava andebol e vólei e antes tinha
praticado pingue-pongue. Na tropa, no início da década de 80, joguei vólei nos
campeonatos militares e andebol como federado. Foi a minha última fase
desportista. Mas prefiro o vólei, porque é colectivo e muito mental. É o único
jogo colectivo em que uma equipa física e tecnicamente inferior a outra pode
vencer se tiver psicologicamente uma grande capacidade de entreajuda. Porque é
um desporto colectivo, onde não há contacto físico directo. Os factores de
entreajuda suplantam aspectos de natureza física.
Ia buscar ao desporto o seu equilíbrio?
O corpo precisava
de acção e o desporto tem várias coisas interessantes. No desporto colectivo funcionamos um por todos. E o
desporto tem ainda a característica de a pessoa ser capaz de se superar a si
mesma. Se a vida fosse desporto, a sociedade seria provavelmente melhor.
Mas no desporto há muita corrupção.
É verdade, há
corrupção, há pessoas individualistas e há golpes. Mas os códigos de conduta
estimulam mais as boas práticas do que as más. Talvez seja por isso que sempre
pratiquei desporto. Ou também porque sempre gostei e precisei de fazer mais do
que uma coisa.
Ainda hoje precisa?
Absolutamente. É talvez o que me leva,
sempre que posso, a viajar. Hoje viajo muito por razões de “força maior” (é a
primeira vez que me sinto com excesso de viagens), mas viajei à boleia pela
Europa quando ainda se podia andar à boleia, creio que a primeira com 15 anos,
até Paris. E utilizei bastante o Inter-rail, que me permitiu conhecer boa parte
do Sul da Europa e praticamente todos os países de Leste e da Europa Central.
Viajar é uma arte, abre muito a cabeça, o contacto com outras vidas e
civilizações relativiza muito da nossa própria vida.
Qual é o balanço que faz da sua experiência como
eurodeputado?
É ambivalente, porque o poder de decisão daquele Parlamento, sendo
maior do que as pessoas pensam, é, efectivamente, muito limitado. Depois, há
momentos em que sinto uma franca utilidade no meu trabalho, como é o caso do
acompanhamento dos problemas dos imigrantes.
É um perfeccionista?
Sou exigente. Por exemplo, demoro mais
tempo a corrigir o que escrevo do que a escrever. Acho que o trabalho deve
sempre ficar bem feito. Nem sempre consigo, é sempre uma função do tempo, mas
evito fazer coisas que considere abaixo dos mínimos de exigência que me
imponho.
Quando começou a interessar-se por política?
Desde muito
novo. No meu tempo de juventude a palavra ‘político’ não existia, havia
fascistas e antifascistas. Os antifascistas nunca se consideraram “políticos”,
na acepção que o termo hoje tem. E eu também não, embora tivesse, desde os meus
12, 13 anos, actividade política. Participava em associações não legais de
estudantes.
Que pensa ter aprendido com a vida?
Espero ser hoje uma
melhor pessoa, mais equilibrada do que quando era novo. Mas sinto que terei
ganho umas qualidades e perdido outras.
O nascimento dos filhos teve um papel nessa mudança?
Não
tanto o nascimento deles, mais a sua existência e a ideia, que não tinha
presente quando eles nasceram, de que só se passa pelas idades uma vez e que
nalgumas um pai pode ajudar. E, portanto, tem de se mudar o necessário para se
poder estar presente, mesmo que ausente. Espero conseguir isso melhor agora do
que há cinco ou seis anos.
O Miguel foi casado, mas não com as mães dos seus dois
filhos…
Sim, casei-me uma vez, tinha 20 ou 21 anos, não porque
verdadeiramente me quisesse casar mas porque facilitava a relação. E namorei
mais tempo do que aquele que estive casado. Divorciei-me quatro ou cinco anos
depois, a pedido da outra parte, porque por mim ainda hoje podia estar casado,
porque o papel nunca teve grande importância. Depois nunca mais me casei, mas da
minha primeira relação durável nasceu o André e da segunda o Frederico.
É romântico e afectivo?
Numa relação, há épocas mais
românticas e afectivas e outras menos. Acho que a grande dificuldade de uma
relação é saber como reinventar a rotina. O importante de uma relação não é o
seu estado de paixão, mas como a rotina pode ser revolucionada. Nisso, as
mulheres são quase sempre muito melhores do que os homens. Aliás, as mulheres
são, em regra, a melhor parte da Humanidade. Estou profundamente convencido
disso.
Já viveu muitas paixões?
As grandes paixões são raras.
Aliás, o que é verdadeiramente importante na vida acaba sempre por se contar
pelos dedos da mão. A não ser que uma pessoa seja pouco criteriosa. (Risos)
Evita expor a pessoa com quem mantém uma relação…
Quem vive comigo já tem de aturar a minha condição de
pessoa pública! As pessoas com quem vivi nunca gostaram de se expor. E o mesmo
se passa com a minha relação actual, que tem alguns anos, mas discreta
continuará. É para ser, não é para exibir.
Como surgiu o documentário sobre o Mediterrâneo?
Este
documentário nasceu de uma conversa com o meu amigo Cláudio Torres, que me disse
que a Atlântida, a ter existido, se situaria no Sul da Península Ibérica. Eu
sempre tinha imaginado a Atlântida algures no oceano, e até por debaixo dos
Açores, devido a um livro de BD de Blake e Mortimer. Achei a revelação tão
extraordinária que começámos a falar. A ideia do documentário, que atravessa as
civilizações que se desenvolveram em redor do Mediterrâneo, é a da busca da
Atlântida, que, no fundo, existe dentro de cada um de nós. A grande dificuldade:
o facto de o Mediterrâneo ter sido mil vezes filmado e comentado, ao contrário
da série anterior, também realizada pelo Camilo Azevedo, que era sobre o Índico.
Para fugir ao mais convencional, filmámos as tradições judaicas na Tunísia, a
Grécia antiga na Líbia ou a igreja ortodoxa em Istambul. Procurámos o olhar
menos comum. Todo o interesse reside em reinventar o que há para dizer e para
ver. Foram dois anos de trabalho, primeiro para ir aos locais, depois, regressar
para filmar, muitas vezes com dificuldades. Na Líbia, por exemplo, não pude
filmar pessoas. Pude filmar pedras, pessoas não.
Além do jornalismo, que características tem em comum com os
seus irmãos (Paulo e Catarina Portas)?
Temos algumas coisas em comum. Por
exemplo, gostamos de cinema. E de ir ver os filmes numa sala de cinema escura,
com um ecrã grande, e na terceira ou quarta fila.