Tem quase 70 anos. Ninguém lhos dá, mas também “ninguém mos tira”, graceja Ricardo Pais assim que nos encontramos no Hotel Lisboa Plaza, onde fica sempre que vem a Lisboa, já que há 15 anos decidiu vender a casa que tinha a dois passos do Conservatório, onde dava aulas, e do Palácio Foz, onde a mulher, Regina, trabalhava.“Lisboa é uma cidade onde perdemos tempo a fazer sistematicamente o que não devemos! É fantástica para reformados ricos, para quem não tem nada para fazer, para quem possa ter uma casa na Lapa…”, diz Ricardo Pais, que hoje vive entre Viseu e o Porto. Mas espreitemos o percurso daquele que é considerado um dos maiores encenadores da atualidade: nasceu em Maceira-Liz, onde teve uma infância luxuosa, passou por um colégio interno em Vila Nova de Ourém e foi em Viseu que completou o ensino secundário. Foi também ali que viu pela primeira vez Regina, a mulher com quem está casado há 44 anos, e de quem tem dois filhos, Nicolau, que estudou Bioquímica e hoje é músico, e Simão, de 28 anos, com mestrado em Psicologia mas a dar cartas na representação em Itália. Tem ainda três netas, Carlota, de dez anos, Rosa, de três, e Clara, de um ano e meio.
No seu percurso ainda tentou o Direito em Coimbra, terra natal da mãe. Não gostou e partiu para Londres, fugindo à tropa, já com o teatro no horizonte. Serviu às mesas e guiou turistas para conseguir tirar o curso de Encenador na Drama Centre, que Sean Connery ajudou a fundar. Regressou anos mais tarde a Portugal, já casado. Teve uma passagem fugaz pela direção do Teatro Nacional D. Maria, assumiu entre 1995 e 2000 o cargo de diretor do Teatro Nacional de São João, no Porto, onde regressou em 2002 e ficou até 2009. Do seu currículo fazem parte tantas peças que é difícil escolher destaques, por isso salientamos O Mercador de Veneza, a comédia “séria” de William Shakespeare que está em cena até dia 11 deste mês no Teatro Municipal de Almada.
Sem querer fazer muitos projetos, para 2013 tem já viagem marcada para a Rússia, onde estará ao lado de nomes como Emmanuel Demarcy-Mota, Bill T. Jones, William Forsythe, Mats Ek ou Robert Lepage, no Festival Internacional de Teatro Tchékhov, um dos mais importantes do mundo, com a peça Sombras – A nossa Tristeza É uma Imensa Alegria.
É com transparência que se segue esta conversa.
– Conte-nos como foram os anos em Maceira-Liz, o tal “microcosmos muito particular”?
Ricardo Pais – Vivi lá até aos 11 anos. Era um bairro construído em absoluta autossuficiência, havia piscina, campos de ténis, a melhor assistência médica prestada em Portugal… Um universo verdadeiramente fabricado, que pertencia à Empresa de Cimentos de Leiria e que foi fundado em 1936 por Henrique Sommer, tio de António Champalimaud.
– Foi uma infância de luxo…
– Tive uma infância fora deste mundo. Quando ia a Viseu, terra do meu pai, e via as crianças descalças, cujas mães não tinham sequer cinco tostões para medicamentos, nem queria acreditar…
– E nem deveria querer mudar-se para lá…
– Pois não! E nem sequer era Viseu, era Torredeita, uma terreola rural, no sentido mais primitivo do termo. Os hábitos da Beira Alta interior são muito diferentes dos hábitos da beira-mar…
– Mas acabou por se adaptar…
– Completamente. Quando os meus pais se separaram os filhos foram divididos. As minhas duas irmãs ficaram com a minha mãe em Lisboa, eu fui com o meu pai para Viseu e foi um grande choque. Conheci a terra a fundo e foi lá que conheci a minha mulher, eu tinha 16 anos, ela 15.
– Mas antes disso estudou num colégio interno…
– Estive no colégio Fernão Lopes em Vila Nova de Ourém. Um internato pequeno para onde iam os incorrigíveis dos grandes colégios como o Nun’Álvares de Tomar e o de Cernache. Esses alunos eram enviados para serem recuperados porque o ambiente era de tal forma familiar que era impossível fazerem as malandrices que faziam. Não era o meu caso. Fui lá parar porque a mulher do diretor do colégio tinha ido a Maceira-Liz ter um bebé com a minha avó, que era parteira, e na altura que os meus pais se separaram convinha colocar os filhos num sítio onde não dessem muito trabalho…
– Imagino que tenha sido duro cortar laços com a família.
– Sim, o mais difícil foi cortar laços com a minha mãe. Mas ela já seguira com a sua vida, tinha outros namoros. No colégio tinha uma fotografia dela na mesa de cabeceira. Não me valeu de muito…
– No seu caso, parece ter um casamento para a vida.
– [risos] Conheci a Regina em Viseu, estávamos a fazer exames quando achei que ela estava a olhar para mim de forma especial.
– Foi ela que olhou para si de forma especial?
– [risos] Não estava nada a olhar para mim, eu é que achei por causa da inclinação da cabeça…
– E casou-se cedo!
– Nem eu imaginava que tal seria possível. [risos] Mas a nossa situação familiar era muito peculiar. A minha era traumática em muitos aspetos e a dela também.
– Foi um escape?
– Não foi um escape porque entre nós havia atração mútua e gostávamos um do outro.
– Mas apressaram as coisas…
– Havia graus de autoridade, de exercício psicanalítico do pai e da mãe, de um lado e do outro, que a nossa relação ajudava a resolver, portanto, tratámo-nos enquanto nos amávamos. Casámo-nos em Londres a 16 de maio de 1968. Parti para Inglaterra abandonando o curso de Direito, decidindo que me queria exilar, que não queria ficar pelos sítios mais marcados pela vida dos cafés de esquerda, dos militantes antifascistas, desertores e refratários como eu ao serviço militar. Queria ir para uma cidade mais arejada e queria também ir para as escolas inglesas…
– Não estou a vê-lo em Coimbra…
– Cair em Coimbra no tempo em que eu caí, no meio de toda aquela ‘cinzentura’, foi dose. É talvez a pior cidade do mundo. Tinha uma relação forte com a cidade por ser a terra da minha mãe e por naquela altura ainda ter lá a minha bisavó materna, mas essa relação com a cidade destruiu-se completamente.
– Perdoe-me os juízos, mas também não o identifico com um curso de Direito…
– [risos] Queria ser o Perry Mason, queria ir desvendar – ao contrário do Direito Processual português – os crimes aos olhos da audiência. Fascinavam-me duas coisas muito particulares, uma o desejo do espetáculo, outra, o gosto pela retórica…
– [Risos] E as suas ilusões foram completamente ao ar.
– No primeiro ano nunca ouvimos falar de justiça, nunca fomos estimulados a ir a tribunal, a retórica da maioria dos grandes catedráticos, alguns dos quais tinham sido ministros da Justiça de Salazar, era lamentável. Depois decidi vir para Lisboa para terminar o curso e ainda fiz Direito Administrativo com Marcello Caetano, personagem que anos mais tarde, curiosamente, vim a retratar em Capitães de Abril. Ele era brilhante!
– Bem, voltemos a Londres…
– Então, casei-me e vivemos sete anos sem ter filhos. Queria estudar representação, ser ator mas acabei, por influência de algumas pessoas que tinham visto a minha audição, a fazer o curso para encenador. E ainda bem que o fiz. Depois veio o 25 de Abril e regressámos a Portugal.
– E nasce o primeiro filho…
– Estávamos nós em Albufeira quando decidimos que íamos ter um filho e isso concretizou-se. O Nicolau é um produto de abril, tem 37 anos. Foi assim que recomeçou a nossa vida neste país, onde comecei a encenar e a dirigir, ao mesmo tempo que dava aulas de Direção de Atores na escola de cinema do Conservatório Nacional.
– O segundo filho também foi assim tão programado?
– Nada! Já estávamos a viver em Viseu quando sugeri à Regina que tivéssemos outro filho. Ela foi radicalmente contra, mas por acidente ficou grávida e tivemos então o Simão. Nasceu em Viseu e considera aquela terra a capital da Península Ibérica. No entanto, vive em Itália, onde é ator.
– Foi um pai presente?
– Mais com o Simão do que com o Nicolau. Em Viseu o ambiente é mais fácil de controlar. O Nicolau foi nascer a Londres para ter dupla nacionalidade mas quando ele tinha oito semanas viemos viver para Lisboa, uma cidade que tem um clima ótimo e uma luz lindíssima, mas onde se perde sistematicamente tempo a fazer o que não se quer. É fantástica para reformados ricos, para quem possa ter uma casa na Lapa…
– O que é que o faz correr?
– Nada! Adorava não fazer nada…
– Portanto, gostava de ter uma casa na Lapa…
– [risos] Não, neste momento a minha vida é entre Viseu e o Porto, onde vive o Nicolau, a minha nora e as minhas netas mais novas. A mais velha, fruto de uma relação que o Nicolau teve antes do casamento, vive em Lisboa e tento vê-la sempre que posso.
– Como avô, intromete-se na vida das suas netas?
– Tento ser pouco intrusivo. A minha mulher é mais presente, mas se não as vejo dois dias seguidos fico logo com saudades.
– Na sua vida profissional parece ser mais racional, implacável. Consegue receber um não?
– Quando me dizem ‘não’, é para sempre. Não volto a contar com essa pessoa.
– E já recebeu algum ‘não’ de um ator com quem gostasse muito de trabalhar?
– Já! Há muitos anos, do João Reis. Ele não gostou do tom da assistente que na altura o convidou e a sorte foi que eu não registei que ele não tinha aceite, senão, teria perdido o ator da minha vida. É inequivocamente o melhor ator português da geração dele.
– Deixa coisas por dizer? Ou não tem papas na língua?
– Tenho uma forma elaborada de me dirigir às pessoas com quem trabalho e tento ser o mais eloquente possível. Quando alguém faz alguma coisa mal, tento que corrija o erro. Mas acho que sim, às vezes deixo coisas por dizer!
Ricardo Pais: Sobe o pano e entra em cena o seu lado mais intimista
Muito terá ficado por contar mas o encenador, de 67 anos, tentou resumir numa hora e meia de conversa alguns momentos mais marcantes da sua vida. Falou da infância luxuosa, da passagem por um colégio interno e de Regina, a mulher que conheceu no liceu e com quem está casado há 44 anos.