Chama-se Alfredo Sousa
Pinto de Magalhães Ramalho, é licenciado em Direito pela Universidade de
Lisboa e especializou-se em Ciências Documentais na Faculdade de Letras de
Lisboa. Além de jurista, documentalista e entusiasta de mil causas, é, desde
1991, o director executivo da Biblioteca Universitária João Paulo II, da
Universidade Católica Portuguesa; e, desde 1997, o presidente da Direcção da
Associação Casa Veva de Lima. Em boa hora o desafiámos para nos dar a conhecer
esta mansão extravagante – nas Amoreiras, em Lisboa – bem como a sua excêntrica
anfitriã, Genoveva de Lima Mayer, falecida em 1963. Com o seu charme e
cultura já proverbiais, motor de mil palestras e saraus neste lugar mitológico,
Alfredo Magalhães Ramalho desvenda-nos os segredos desta jóia desconhecida da
maioria dos lisboetas, que foi palco de um dos salões literários mais
concorridos da capital, agora propriedade da CML e aberta ao público, e onde,
recentemente, foi rodada parte das filmagens de uma nova versão de Os Maias.
– Comecemos pelos donos da casa…
– Os donos eram o Prof. Rui Enes Ulrich (1883-1966), que era lente da
Faculdade de Direito de Coimbra e foi embaixador em Londres, e a sua mulher,
Genoveva de Lima Mayer (1886-1963), socialmente conhecida por Veva
Ulrich e literariamente como Veva de Lima. Tiveram dois filhos, a Maria
Ulrich e o Jorge. Toda a família aqui viveu, até à morte da Maria,
em 1988.
– Da filha todos nos lembramos…
– Pois, teve um papel preponderante na Acção Católica e, em 1954, fundou a
Escola de Educadores de Infância Maria Ulrich, que ainda hoje funciona. Criou a
Associação Casa Veva de Lima, para manter vivo o salon literário de sua
mãe, e a Fundação Maria Ulrich, para investigação pedagógica.
– Sendo o Carlos Mayer um dos Vencidos da Vida, virá daí a ideia de um salão
literário?
– O pai da Veva nunca escreveu, mas fazia realmente parte dos Vencidos da Vida,
tal como o Eça ou o Ramalho, que o consideravam um dos elementos
mais brilhantes do grupo, sobretudo pela sua capacidade fantástica de trazer
ideias e suscitar o debate. De todos os filhos, foi a Veva a única que herdou
esta faceta.
– Mas a Veva escreveu e muito…
– Sim, e até se considerava, antes de mais nada, escritora! O tempo demonstrou
que não foi uma escritora de génio, mas, mesmo assim, deixou obra. Começou em
1916, aos 30 anos, com uma peça de teatro chamada Fantaisie de Printemps,
e entre teatro, poesia, artigos de opinião, relatos de viagem e conferências,
deixou escritas perto de 30 obras.
– Em que outros planos revelava a sua excentricidade?
– Bem, houve grandes festas aqui. Numa, os criados, com a cara engraxada,
seguravam archotes; noutra, instalou no jardim tendas e camelos, mandando
tingir de anil todas as toalhas de mesa; noutra ainda, fez uma entrada
majestosa ao som de trombetas, abanando-se com as suas plumas, num carrinho em
forma de cisne puxado pelo Afonso Lopes Vieira. E tinha uma pantera, que
um dos irmãos lhe ofereceu ainda bebé e trazia à trela, para horror das pessoas
que a visitavam.
– Quem eram os seus grandes amigos?
– O Afonso Lopes Vieira, sua “alma gémea” na sensibilidade poética e seu fiel chevalier
servant, a Carolina e o Pedro Campilho, a Simone e o
Francisco Castelo Branco, a Fernanda de Castro e o António
Ferro…
– Há cisnes e borboletas por toda a casa…
– Sim, obsessivamente! Os cisnes, por serem um animal cuja elegância admirava,
e as borboletas, porque a impressionava a maneira como não resistem a
aproximar-se do fogo, a ponto de morrerem queimadas – talvez revendo-se, ela
mesma, nessa metáfora. Parece que, em muitas mitologias, a borboleta está
ligada à morte, e algumas pessoas julgam ver neste fascínio da Veva o horror
que o envelhecimento lhe causava…
– Houve aqui uma tragédia…
– Sim, o suicídio do Jorge, único filho, bonito e esfuziante como todos os
Mayer, que se apaixonou por uma prima. Tendo combinado irem juntos ao teatro,
pediu-lhe que trouxesse uma rosa branca no vestido se achasse que ele poderia
“ter alguma esperança”; ela trouxe uma rosa, sim… mas preta! O pobre chegou a
casa, subiu ao quarto no segundo andar e deu um tiro na cabeça! Depois disto, a
Veva nunca mais voltou a ser a pessoa que era.
– Que horror. Antes disso viajavam muito?
– Julgo que sim: termas na Suíça, Alemanha ou Itália, há postais e
fotografias. Paris para as toilettes, Inglaterra para rever os amigos
que por lá tinham feito, instalavam-se sempre no Claridge. Também foram a
Moçambique, atravessando toda uma parte da África Oriental. E sei que a Veva
ficou entusiasmada com Nova Iorque.
– Eram tão ricos como a casa sugere?
– Julgo que foram sobretudo pessoas que, com muita graça e panache, souberam
tirar o máximo partido do que tinham, deixando a imagem de uma vida social
realmente brilhante. Mas nem sempre “tudo o que reluz é ouro” e uma senhora que
foi muito próxima da Veva contou-me que ela não tinha muitas jóias boas, sabia
era muito bem combinar fantasia de óptima qualidade com o que realmente era
bom. E o Rui, cuja biblioteca rivalizava com a do rei D. Manuel, teve de
a vender “porque a Veva custa-me fortunas!”
– Embora um pouco kitsch, a decoração é extraordinária…
– Tem toda a razão, a Veva era uma pessoa essencialmente kitsch, só que
sabia ser kitsch com chique, graça e categoria. Eu acho que a graça da
casa resulta, basicamente, do progressivo amontoar de curiosidades que ela ia
trazendo das viagens e das andanças da sua vida. Bom, e também da intervenção
de um ou outro decorador…
– Onde desencantava ela todas estas peças únicas?
– Sei que comprou coisas no leilão da condessa de Edla, por exemplo. E também
que encomendou várias peças ao ferreiro de arte Lourenço Chaves de Almeida,
que depois foi autor do candelabro do Soldado Desconhecido, na sala do
Capítulo da Batalha.
– Como foi possível conservar tudo isto, incluindo vestidos, peles, artigos
de toucador? Não houve herdeiros?
– O filho Jorge morreu novíssimo e a Maria era solteira, não havia herdeiros
directos. Este ramo específico terminava. A Maria propôs ao presidente Nuno
Abecasis, de quem era amicíssima, que a Câmara comprasse o edifício,
oferecendo ela em contrapartida a maior parte do recheio – como forma de
perpetuar o que aqui era essencial, o ambiente e a vida social e cultural. Sei
também que a Maria ofereceu ao Museu do Traje muita coisa…
– Como funciona a associação?
– A Casa Veva de Lima é uma Associação legalmente constituída – que, embora
funcione no mesmo edifício que a Fundação Maria Ulrich, é juridicamente
distinta desta. Vive sobretudo dos chamados “convivas”, pessoas que aqui vêm
uma primeira vez trazidas por alguém “que já seja da Casa”. A primeira equipa
directiva foi presidida pelo Dr. Manuel Abecasis, e funcionou desde a
criação da associação, em 1985, até 1997, quando pediu escusa e foi eleita a
actual, a que tenho o gosto de presidir.
– O que organiza aqui e com que frequência?
– A actividade da associação consiste na organização quinzenal de uma sessão,
sempre às quartas-feiras, de Outubro ao fim de Junho. Essas sessões constam de
um jantar volante, simples mas de muito boa qualidade, que começa às 20h30, e
para o qual sócios e convivas se podem inscrever e trazer convidados, pagando
20 euros por pessoa. Depois, há uma palestra ou um concerto, seguidos de
debates, estes já gratuitos e abertos a outras pessoas.
– Deve ser giro estar ligado a um esplendor destes…
– Sim, mas ao fim de 16 anos, também estamos mortinhos por passar o lugar a
mais novos, que possam manter a associação fresca e operacional.
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico
Alfredo Magalhães Ramalho: “Houve grandes festas aqui”
Nesta extravagante mansão, com um recheio assombroso, viveram o embaixador Rui Ulrich e a escritora e grande anfitriã Genoveva de Lima Mayer, com os seus dois filhos, Maria (Ulrich) e Jorge.