Dono de um percurso incontornável, com mais de meio século de carreira, Nicolau Breyner, de 74 anos, é bem conhecido dos portugueses. Por isso, não nos alongaremos em apresentações, antes deixaremos que as suas palavras falem por si e contem como encara a vida e até a morte, numa conversa que teve lugar durante o primeiro aniversário da sua Academia de Atores.
– Estar com os seus alunos e vê-los a querer singrar na representação provoca-lhe alguma nostalgia da juventude?
Nicolau Breyner – Nenhuma! Acho graça ao que eles dizem, pois no fundo são as vivências que todos nós temos: os anseios, as dúvidas, as certezas, e que depois perdemos, claro, mas a vantagem da minha idade é que já não tenho certezas sobre nada. E isso é ótimo! Não sei nada nem tenho a certeza de que existo [risos]! Estar com eles faz-me reviver o tempo em que tinha a idade deles, mas não me traz nostalgias negativas ou pessimistas. Acho espantoso ver estes miúdos cheios de força e de esperança… Eu era assim… Mas era um bocadinho mais doido do que eles [risos].
– Estar com eles parece dar-lhe muita energia…
– É fundamental! Tenho uma ótima relação com eles e não sinto a diferença de gerações. Emocionalmente, sinto-me completamente perto deles e acho que eles sentem o mesmo em relação a mim. Mas é claro que há coisas que penso e sinto de maneira diferente…
– Por causa da idade?
– Por causa da maturidade e de uma série de coisas. Mas acho que estou melhor assim. É uma questão de gosto [risos].
– É um apaixonado por cinema e teatro, mas faz muita televisão…
– Sim, em Portugal a televisão é fundamental para um ator, é o nosso ganha-pão. Quando acabo uma novela, sinto sempre uma sensação de alívio, porque normalmente são dez ou 12 meses de trabalho muito intensos, mas passados dois ou três meses começa o bichinho de querer regressar…
– Diz que não tem certezas. Os 74 anos não deveriam ter-lhe dado algumas?
– Os 74 é que fazem com que não tenha a certeza de nada! Eu sei que sei, sem qualquer espécie de vaidade; agora a certeza de que aquilo que faço está certo, a certeza do amanhã, de como as coisas vão correr… isso não tenho.
– E pensa na morte?
– Claro, mas cada vez com mais tranquilidade. É uma coisa natural, quando acontecer, acontece. Gostaria que acontecesse sem dor, sem sofrimento, mas de resto acho que é uma coisa perfeitamente natural. Vivi muito, bastantes anos, fiz algumas coisas de que me posso orgulhar… outras nem tanto… outras nada… Tenho duas filhas e três enteados… Acho que a minha missão está cumprida.
– A noção da finitude não aumentou a ansiedade de querer fazer mais?
– Não, em mim o querer fazer mais é uma ansiedade constante. Desde que nasci. Não é por ser mais velho que tenho maior ansiedade, sempre tive. É espantoso, porque tenho imensos projetos para daqui a cinco, seis anos, e penso nisto com toda a calma, porque se não acontecerem, paciência… Agora, não me vejo reformado, nem pensar nisso! Acho que isso é a antecâmara da morte e não quero. Acho que enquanto tiver condições físicas e psíquicas para trabalhar, continuo.
– Normalmente, os artistas não se reformam…
– Acho que se tivesse outra profissão qualquer também não me reformaria. Se tiver dificuldades em memorizar ou em locomover-me, terei a consciência de que não posso continuar mais e viverei das minhas recordações. Mas também acho que farei outro tipo de coisas… posso estar sentado a pensar em coisas…
– Tem mais de meio século de carreira. Ainda há muitas coisas por fazer?
– Imensas! Há filmes e peças que quero fazer… pessoas que quero conhecer… risos e choros que quero ter…
– E como está a nível de saúde?
– Graças a Deus, muito bem.
– Mas continua a ser acompanhado, a fazer exames regulares?
– Faço poucos, diga-se que me distraio um pouco com isso. Agora estive um mês sem tomar duas ou três coisas que preciso de tomar… Esqueço-me, mas acho que é porque não me sinto mal. Fiz exames há dias, por outras razões, e está tudo bem. Deus tem sido muito bom para mim.
– Quando uma pessoa passa por um cancro, vive com o permanente receio de uma recidiva?
– Todos o temos um pouco, mas na minha idade há uma coisa boa: digamos que o cancro é sempre mais benigno, porque a sua progressão é muito mais lenta. Sinto-me otimamente, não tenho qualquer razão de queixa. Fisicamente, não tenho nada que me chateie, a não ser um menisco todo lixado pelo desporto.
– Sente-se um homem idoso?
– Francamente? Não. Não me sinto idoso, nem física nem mentalmente. Sinto-me um homem maduro, perfeitamente capaz de acompanhar as gerações mais novas, tenho uma vida física e intelectualmente ativa e não tenho queixas. Às vezes, penso se não andarei a fazer figuras parvas, porque me ponho ao nível dos meus alunos que têm 20 anos, mas não, eu percebo-os, e eles a mim. Às vezes, eles dizem coisas que me fazem rir por dentro e penso que não vale a pena explicar-lhes… não vão perceber… têm de sentir…
– Arrepende-se de alguma coisa?
– Não sou dado a arrependimentos, porque não valem a pena, as coisas já estão feitas… Vivi intensamente tudo o que era para viver, sem pensar no amanhã. E faria tudo de novo. Foi tão bom o que vivi, tão cheio, tão pleno! Vivi, sofri, amei e amo intensamente, e é tão bom que não trocava por nada.
– Deve ser bom sentir-se tão realizado…
– Há quem não atinja isso nunca. Há dias em que estou melhor, outros pior, como toda a gente, agora, se pensar no meu passado, acho que construí coisas.
– Ainda tem receios de alguma coisa?
– O único receio que tenho é o de não poder trabalhar. Isso seria complicado.
– Essa necessidade de trabalhar não tem também a ver com o reconhecimento? Os atores têm egos especiais…
– A primeira recompensa do ator não é o dinheiro, é o aplauso! Ainda há dias a minha mulher me disse: “Você é uma pessoa que precisa de festas no ego.” E eu respondi: “Claro que preciso, faz parte.”
– Mas entende que pode não ser fácil para os outros lidar com isso?
– Sim, percebo e aceito, mas quem se aproxima de um ator tem de saber que faz parte do seu alimento. Tem de beber, comer, estar sexualmente feliz e receber festinhas no ego. É fundamental. Quem não souber isso faz perigar a relação.
– A Mafalda [Bessa] tem sabido fazer isso?
– Claro. Os casamentos entre atores falham muitas vezes por causa disso: ambos precisam de festas no ego. Nós somos complicados… tenho a certeza de que não deve ser pera doce ter uma relação com alguém como eu. Agora, ou se gosta, ou não; ou se tem, ou não se tem. Quando uma pessoa nos aceita, tem de perceber que são essas as regras do jogo. Somos seres muito frágeis. Eu, que sou uma pessoa fisicamente forte, e forte em quase tudo, sou muito frágil em termos de ego.
– E como é que um ego assim é confrontado com o envelhecimento?
– Para mim não foi muito complicado. Vamo-nos vendo na televisão e nos filmes ao longo dos tempos, é uma coisa gradual. Aquilo que sei é que qualquer ator é muito melhor com 60 anos do que com 20. Não tenham a menor dúvida. Há grandes estrelas que aos 20 anos eram uns canastrões monumentais. Isso é uma coisa que o tempo nos dá. Em questões de talento, o ator fica mais vigoroso com a idade. Sei que sou melhor agora e que se Deus o permitir, daqui a dez anos serei melhor ainda.
Nicolau Breyner: “Sou forte em tudo, mas sou frágil no ego”
Aos 74 anos, e depois de ter tido um cancro há seis, diz que se sente em grande forma. Não teme a morte, mas quer trabalhar até ao fim.
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