A saúde tem pregado algumas partidas a Eunice Muñoz – em 2012 deu uma aparatosa queda, nos bastidores do Teatro D. Maria II, da qual resultaram várias fraturas, em 2013 foi submetida a uma intervenção para remover um tumor na tiróide que lhe afetou as cordas vocais e, em agosto passado, foi operada ao coração, para substituir a válvula aórtica –, mas, aos 88 anos, e a comemorar 75 de carreira, esta grande senhora do teatro português disse à CARAS que neste momento se sente rejuvenescida. Em parte, sem dúvida, porque tem tido a seu lado, em todos os momentos, os seis filhos, os oito netos e os quatro bisnetos.
– Há 75 anos que lhe fazem perguntas sobre a sua carreira. Não se torna aborrecido?
Eunice Muñoz – Não, faz parte da profissão, seria um bocado tonto se me aborrecesse! Foi o que fiz toda a vida… o que é que me hão de perguntar [risos]?! É uma forma de carinho, de falar de mim às pessoas. Sempre me senti muito acarinhada, não tenho nenhuma razão de queixa e isso traz-me muita alegria.
– Ainda tem alguma coisa por fazer em termos de representação?
– Sim, sempre! Acabei uma novela e para o ano vou regressar ao teatro.
– Já tem saudades do palco?
– Sim, é óbvio, o teatro é a minha preferência.
– Os atores referem muito que é no teatro que se sentem em casa, com o ranger das madeiras, os aplausos. Sente o mesmo?
– É uma forma romântica de ver a coisa, mas engraçada. É no teatro que me sinto realizada. Foi onde tudo começou, quando eu tinha cinco anos e trabalhava com os meus pais.
– Provém de uma família de artistas, o seu percurso não poderia ser outro…
– Seria realmente difícil. Os meus avós maternos eram do teatro e os paternos do circo. Sou muito orgulhosa das minhas raízes. Tenho uma profunda admiração pelos artistas de circo.
– Tinha 13 anos quando, em 1941, fez a primeira peça no D. Maria, Vendaval, numa altura em só os atores com o Conservatório ali representavam…
– Sim, era uma miúda, ninguém sabia quem eu era, mas foi uma forma muito bonita de começar. Quando ligaram do teatro à minha mãe, ela ficou muito orgulhosa e entusiasmada. E eu respondi-lhe: “Porque não?!”
– Nos últimos anos tem vivido alguns problemas de saúde. Um deles mudou-lhe a voz. Já se habituou a este novo timbre?
– É impossível habituar-me, porque me limita, limita muito o meu trabalho… gostaria era de falar claro…
– Mas continua a poder trabalhar. Sente-se mais cansada, é isso?
– Sim, mais cansada. E entristece-me muito, mas disfarço com um sorriso. Espero ainda poder fazer alguma intervenção para melhorar a voz. A voz faz muita falta a um ator…
– Que cuidados tem?
– Não posso abusar e faço fisioterapia às cordas vocais três vezes por semana.
– Com a sua idade já poderia estar em casa a desfrutar da sua reforma…
– Tenho muita dificuldade em estar quieta, mas apesar de tudo sou uma mulher de casa. Gosto muito da minha casa, de lá estar, de arrumar tudo. Gosto muito do trabalho da casa, da cozinha, dá-me prazer, mas tenho de ter sempre uns textos de parte para estudar.
– É isso que a faz sentir-se viva?
– É isso mesmo, é fundamental para mim.
– Há muitos anos, teve alguns espetáculos que não fizeram sucesso. Como lidou com isso na altura?
– É verdade. E tive outros dois cortados pela censura. Coisas muito dolorosas, fiquei muito triste, mas nunca me fui abaixo.
– É mãe, avó e bisavó. Qual é seu principal papel?
– Já nem sei. Gosto tanto deles todos que já nem sei. É uma grande alegria ir até aos bisnetos. Vivi tudo muito nova… Fui mãe aos 19 anos. Os seis foram uma alegria. Foi uma vitória muito grande. Tenho orgulho no que fiz, mas não gosto que isso tome conta de mim. Estou contente comigo mesma por ter conseguido criar os meus filhos. O pai dos quatro do meio ajudou-me muito… deu-me o maior apoio.
– Tanto os seus filhos como os seus netos são muito carinhosos consigo, muito cuidadores.
– Sim, são muito queridos, muito dedicados.
– Alguns seguiram os seus passos…
– A Lídia no teatro e a Joana na música, enchem-me de orgulho. E peço a Deus que tenham uma boa carreira.
– Com tanto êxito e com o reconhecimento que tem enquanto atriz, poderia ter alguns ‘tiques de vedeta’, mas não tem…
– Não, nem pensar. Em mim nunca existiu essa tendência e, quanto mais fui envelhecendo, mais isso se tornou evidente. A fama não tem sentido nenhum. Nesta profissão, ter vaidade não faz sentido. O que é bonito, e me traz alegria, é fazer a interpretação certa.
– Ainda tem dúvidas em relação às suas interpretações?
– Tenho, muitas. Tenho muita vontade de fazer sempre mais e melhor.
– Não acha que tudo o que fizer estará sempre bem feito?
– Nem pensar! Esta é uma profissão muito complicada, tem de se trabalhar muito, sempre, até ao fim.
– As palmas e o reconhecimento, ajudam?
– Tenho a maior alegria, como deve calcular, quando o público aplaude com entusiasmo, pois significa que gostou, mas a minha grande satisfação é sentir cada papel que represento.
– Nestas décadas de carreira passou por muitas mudanças enquanto mulher. É confrontada com gravações da sua voz anterior, imagens da sua juventude, do seu envelhecimento… Como lida com tudo isso?
– Com um certo fascínio por tudo isso. Eu até tenho jeito para o teatro dramático, mas na vida real, não. Nego muito esse lado. Acho que a vida é uma coisa muito bela. Tenho um grande amor pela vida.
– E pensa na morte?
– Sim, penso mais vezes do que gostaria. Acho que na minha idade é inevitável.
– Pensa com medo?
– Não tenho medo, mas tenho algum receio de que possa ser com uma doença grave, com sofrimento. Isso preocupa-me mais do que a morte. Se Deus me concedesse o privilégio de uma morte suave, seria muito bom.
– Depois da intervenção ao coração parece estar rejuvenescida…
– Sim, estou. Foi muito bom fazer essa intervenção, porque me sinto bastante melhor.
– Pretende trabalhar até ao fim dos seus dias?
– Sim, até que possa.
– Como resumiria estes 75 anos de carreira?
– Foram anos felizes, preocupantes, inquietantes, de grandes lutas, de coisas boas e más. Uma vida cheia, e isso é muito bom. Tive tudo o que alimenta uma vida.
Produção: Rita Vilhena | Maquilhagem: Tita Costa