Vindo de uma família que sempre se dedicou ao espetáculo, Álvaro Covões pertence à quarta geração que gere o Coliseu de Lisboa e tem os três filhos a trabalhar com ele, o mais velho a tempo inteiro, os outros dois a conciliar o trabalho esporádico com os respetivos cursos universitários.
Dono da promotora de espetáculos Everything is New, um mês e meio antes da pandemia, e otimista com o rumo dos negócios, comprou outra sala de espetáculos, nada mais nada menos do que o Campo Pequeno, onde o fotografámos para esta entrevista. Quando lhe perguntamos se está arrependido da compra dada a situação que entretanto surgiu, encolhe os ombros e diz que não, que para a frente é o caminho, mas o semblante faz-nos pensar que tem tido dúvidas.
Baixar os braços não é, no entanto, movimento que conheça. Convicto de que acordar a economia e “pôr tudo a mexer”, como diz, é o único caminho para não ficarmos submersos, regozija-se por ter sido o primeiro a apresentar um espetáculo ao vivo e com público numa sala nesta era pós-confinamento. Deixem o Pimba em Paz, com Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, levou quase cinco mil pessoas em duas noites ao Campo Pequeno e soube-lhe a recomeço.
– Numa entrevista que deu em 2013 disse que nos negócios nunca se pode dar sinais de pânico. Ainda é válida essa ideia ou a pandemia mudou essa regra?
Álvaro Covões – Não mudou, temos de ser positivos, de nos atirar para a frente e abrir caminho. Portugal está a ser pioneiro também agora, como já o foi noutras eras. Falei com vários profissionais da minha área noutros países – Bélgica, Espanha, França, Inglaterra – e estão todos malucos com o que nós fizemos, provámos que é possível retomar os espetáculos em segurança. Somos um exemplo internacional.
– E estavam de facto asseguradas as regras?
– Sem dúvida. As pessoas aqui não se cruzaram. Há nove portas, houve entradas faseadas, tal como saídas, higienização das mãos, máscaras e lugares de intervalo. Não houve intervalo, a circulação fez-se à direita… Muita gente me disse que se sentiu mais segura aqui do que no supermercado.
– É um recomeço tímido. Num futuro próximo, qual a perspetiva de viabilizar o negócio? Teve de fazer despedimentos?
– Tem de ser progressivo. Não despedimos, mas tivemos de pôr pessoas em lay-off, pois foi a única maneira de continuar. E até conseguimos renovar um contrato assim que retomámos a atividade. Com estes espetáculos já pudemos ir buscar cerca de 100 pessoas que estavam há dois meses e meio sem trabalho. E muitos outros de quem não se fala, como bombeiros e polícias, a assistência médica, a frente de sala, que têm nos espetáculos um complemento de salário relevante.
– Deve saber de muitos casos dramáticos…
– Sim, muitos… Quando se deixa de ter rendimento, o que acontece? Uma tragédia. Por isso estamos a organizar um espetáculo solidário, o festival dos “invisíveis da cultura”, em Lisboa e no Porto. A ideia é juntar patrocinadores que queiram associar-se e pôr a ideia a andar para ajudar muita gente da área do espetáculo que precisa.
– Quanto é que vos custou a pandemia? São milhões…
– Sim… Nem se consegue avaliar.
– É preciso coragem para andar para a frente nestas situações?
– Os empresários são corajosos.
– Ainda tem prazer em ver espetáculos ao vivo ou é só trabalho?
– Tenho, claro, adoro. Tenho saudades de muita coisa, de ópera, de bailado clássico e moderno e, claro, de festivais de verão… Vai ser muito difícil chegar ao dia 8 de julho e constatar que não está a acontecer nada, quando devia estar a começar o NOS Alive. Para mim, que estive na origem desta era moderna dos festivais, não os ter ao fim de 25 anos vai ser doloroso. Mas como já lançámos o NOS Alive 2021, vai ser como se o ano tivesse 730 dias.
– Se de repente tudo voltasse ao normal, que espetáculo gostaria de ver primeiro?
– Tanta coisa… Tenho saudades de ir a uma casa de fados! Aliás, nós temos um projeto, o Festival de Fado… Vou abrir aqui um parêntesis: dizem que não sou uma pessoa da cultura, que sou um mercantilista, mas “o mercantilista” fez um projeto que se chama Festival de Fado, que acontece em quatro continentes e 16 países do mundo. Sou mercantilista mas levo o fado para Xangai, Bogotá ou Buenos Aires…
– Tem sido muito crítico dos programadores dos teatros públicos, que acusa de não trabalharem para o público porque não precisam de bilheteira. Mas não deverá ser esse o dever dos programadores públicos, oferecer cultura diversificada para a qual precisam de apoios precisamente porque essa não sobrevive só com bilheteira?
– Mas eu não sou contra os apoios, a minha conclusão é esta: as políticas culturais em Portugal, e não falo especificamente desta ministra ou de quem a antecedeu, pois têm sido iguais ao longo destes 45 anos de democracia, falharam. Segundo o INE, cada português compra um bilhete de dois em dois anos para espetáculos ao vivo e um bilhete e meio por ano para ir ao cinema. E nós sabemos que as pessoas gostam tanto de uma coisa como de outra. Portanto, falhámos na criação de públicos. Será por falta de instalações e infraestruturas? Será por falta de oferta? Será que a oferta não conquista o público?
– O que sugere como solução?
– A minha sugestão é que os teatros públicos tenham uma quota de acolhimento, em vez de estarem sob a ditadura do gosto de um programador que fecha as portas a todos os outros, embora este deva continuar a ter espaço para a sua programação. Claro que o Estado tem de continuar a investir nas artes, porque a bilheteira não chega, mas temos de abrir espaço para o resto. Temos poucas infraestruturas por todo o país e seria justo que as abríssemos a todos os géneros de eventos culturais, que poderiam coabitar com as escolhas do programador. Quais são as melhores salas de espetáculos? São aquelas que fazem acolhimento, como o Coliseu de Lisboa, o do Porto, o Campo Pequeno, a Altice Arena. Porque abrem as portas a todos, sem exceção. Ao Coliseu tanto vai o Tony Carreira como os Radiohead, tanto vai o Pavarotti como o Emanuel. Isso chama-se democracia. Pode dizer-se que alguma é baixa cultura, mas esse público não tem direitos? Quem é que tem o direito de impor que determinada música não é cultura? E depois vêm todos para um espetáculo chamado Deixem o Pimba em Paz e sabem as letras de cor…
– Para isso às vezes basta ouvi-las uma vez…
– Mas tudo é cultura. Até quem programa ópera sabe que para ter público tem de escolher Verdi em vez de Wagner. Às vezes é preciso pegar em coisas populares para atrair público para outras… Se calhar, sou um sonhador. Agora estiveram todos zangados comigo, vi nas redes sociais, porque sou um mercantilista…
– Mas rejeita por completo essa ideia? Tem feito dinheiro.
– A minha empresa teve 610 mil espectadores em 2019 e boa parte foi em exposições culturais. Levei a Joana Vasconcelos ao Palácio da Ajuda e com isso foram lá 230 mil portugueses. Quando eu era estudante universitário, fui o primeiro a apresentar a Amália em nome próprio no Coliseu. Tive o privilégio de estar com a Mariza quando apresentou ali o primeiro trabalho. Adoro ser mercantilista…
– Sente-se mal-amado pelo seu país?
– Não, faz parte. Mais vale falarem mal de nós do que não falarem. [Risos.] Só tenho pena que não digam a verdade. Toda a gente conhece a minha tendência política, mas isso não interfere com a minha atividade profissional. Fui tão combativo quando o governo de Passos Coelho quis subir o IVA dos bilhetes como fui com o António Costa quando quis repor esse imposto. E vi muita gente que só apareceu na primeira ocasião. Se calhar esses são os mesmos que me chamam mercantilista. Mas fizemos valer as nossas razões e hoje o IVA dos espetáculos ao vivo é de 6%. E agradeço a esta Assembleia da República, que o aprovou. Outra coisa que passou despercebida: nunca vi esses arautos da cultura lutar pela injustiça que foi as exposições terem 23% de IVA nos bilhetes e nós levámos o governo a baixá-lo para 6%. Sem essa mudança não teriam ido 230 mil pessoas ao Palácio da Ajuda nem 125 mil teriam visto o Banksy na Cordoaria.
– Tem sempre os números na ponta da língua…
– Claro, nós vivemos dos números. A diferença entre a demagogia e a realidade são os números. Sei que toda a gente trabalha em prol da cultura, mas neste momento já deveríamos vender 15 milhões de bilhetes para espetáculos ao vivo em Portugal. Falta poder de compra, claro, mas é também uma questão de educação. O que é que tem público, o que é que vende lá fora? Tudo o que o Estado não apoiou. O fado impôs-se lá fora antes de a Câmara de Lisboa o apoiar, embora depois se tenha tornado inexcedível nisso. Outra coisa que venceu lá fora sem apoio foi a arte urbana. Nasceu nos bairros e impôs-se. Outro caso de sucesso sem apoio é o pop rock. Claro que temos de apoiar aquilo que é para as minorias, mas o dinheiro não pode ser todo canalizado para isso.
– Mas o que tem público não precisará tanto de apoio…
– Mas então o que tem apoio já deveria ter gerado mais público, e isso não acontece. Não estou a dizer que não devemos ter teatro mais difícil, mas tanto devemos apoiar a criação artística como o usufruto da cultura. Acho imperdoável que no dia 1 de junho os teatros não tenham aberto as portas. Não as abriram porque não dependem da bilheteira, como acontece com os privados. É tão fácil quando temos dinheiro para pagar as contas… Nem que os abrissem em acolhimento para os que não têm trabalho.