A pandemia fez cancelar concertos, festivais, peças de teatro e espetáculos vários, fechou salas de cinema, levou livrarias à falência e acentuou a precariedade de quem vive da cultura. Não há aqui espaço para meias palavras: como testemunharam vários dos artistas e técnicos que passaram pelo Campo Pequeno na manhã de sábado, dia 21, antes do recolher obrigatório marcado para a uma da tarde, para participarem nesta “Manifestação pela Cultura” – organizada pela Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos (APEFE) e pela Associação Portuguesa de Serviços Técnicos para Eventos (APSTE) –, há muita gente a passar fome, a vender os seus bens, a mudar de profissão. É um ano perdido para a maior parte destes agentes culturais, que se uniram para desafiar o governo a tomar medidas concretas e efetivamente úteis.
No Manifesto pela Sobre-vivência da Cultura em Portugal, divulgado dias antes e assinado pela direção da APEFE, que inclui os promotores de espetáculos Sandra Faria, Álvaro Covões, Paulo Reis, Luís Pardelha e Ana Rangel, fala-se do colapso da cultura e exorta-se os decisores políticos “a dizerem a todos nós, aos 130 mil trabalhadores desta área no país, se somos merecedores de um tratamento e de um olhar em detalhe para o nosso setor”.
Entre janeiro e outubro deste ano o mercado dos eventos culturais registou uma quebra de 87% em relação ao ano anterior e a APEFE, como afirmou Sandra Faria neste sábado, prevê que as medidas das últimas semanas possa levar essa quebra aos 90%. No manifesto reclamam, por isso, “um apoio a fundo perdido da ‘bazuca europeia’ correspondente a 20% da quebra de faturação das empresas e a 40% no rendimento de artistas”, o adiamento de moratórias e créditos empresariais por mais um ano, o acesso a linhas de crédito com características adequadas e, finalmente, pedem que não se afaste o público dos espetáculos ao vivo, pois são realizados com segurança.
E essa foi uma das frases mais repetidas nesta manhã: “A cultura é segura.” Como sublinhou com ironia o ilusionista Luís de Matos, “dizerem-nos que podemos fazer espetáculos às 10 da manhã é o mesmo que dizer a um restaurante que pode servir jantares até ao meio-dia e que as pessoas podem ir para a praia das três às cinco da manhã”. Muito assertivo, Luís de Matos explicou: “Sou a face visível de uma microempresa que este ano celebra 25 anos de existência. Sou a cara de nove famílias durante o ano inteiro, às vezes muitas mais. Nunca recebemos qualquer subsídio do Estado, porque nunca precisámos, mas desde março, quando fomos obrigados a escolher entre afundar ou nadar, decidimos nadar, mas não sabemos por quanto tempo mais vamos aguentar até colapsar.”
A paralisação do setor é transversal e foi testemunhada por vários dos artistas presentes. A fadista Carminho afirmou: “Não vou ao palco, não canto, as tournées foram canceladas, o mundo inteiro está a precisar de ajuda. Não podemos baixar os braços, as pessoas precisam de cultura.” Uma experiência semelhante à de outra fadista, Mariza, que, embora sublinhando que “nunca vivi um momento como este”, quis deixar uma mensagem de esperança, defendendo que “é possível acreditar” que a cultura vai sobreviver, mas não deixou de referir “os concertos cancelados e adiados, a quebra de 90% de receitas, a dificuldade em perspetivar o futuro”.
Num depoimento gravado, o ator José Pedro Gomes garantiu que “há muita gente a passar fome” e a atriz Ana Bola defendeu, como todos os que estiveram presentes, que “um país sem cultura não existe”, perguntando, em jeito de desafio: “Quem assume a responsabilidade de ferir a cultura de morte?” Pegando no testemunho de José Pedro Gomes, o ator José Raposo também falou da fome que atingiu muita gente no setor artístico: “Essa é uma questão que nos toca muito. Tenho sido um privilegiado, estava a fazer uma novela e retomámo-la depois do confinamento, mas é uma coisa que não está a acontecer a muita gente e é gravíssimo.”
O encenador Filipe La Féria também participou de forma virtual, partilhando o momento difícil que vivem todos os que com ele trabalham habitualmente na sequência do fecho do Teatro Politeama. “Sem cultura um país é apenas um sítio, um espaço perdido, sem sentido”, defendeu, reproduzindo uma chamada de atenção que muitos fizeram. Porque a cultura, lembrou o fadista Ricardo Ribeiro, tem sido vista pelos vários governos destes 46 anos de democracia “como um subsídio, e não como um investimento”. Cultura que, sustenta a promotora de espetáculos Ana Rangel, “é um pilar essencial da democracia e do progresso social. Defender a cultura é sempre, e em qualquer circunstância, uma tarefa essencial do Estado, como a própria Constituição determina. O objetivo último de criar uma sociedade mais plural, mais justa, mais aberta ao progresso e ao desenvolvimento social. A defesa da cultura é também, e sobretudo nestes tempos, a defesa de um Portugal melhor, mas tem também outra vertente: é um motor essencial da economia. A esmagadora maioria da riqueza gerada por este setor assenta em investimento privado, de elevado risco, e no trabalho de milhares dos nossos concidadãos, de pessoas que se veem hoje completamente desprotegidas e entregues à sua sorte.”
E muitos lembraram ainda que a cultura tem ajudado a garantir a sanidade mental da população em geral durante estes meses. “A pandemia comprovou a importância que a cultura tem na vida das pessoas. Foram os poetas, os cantores, os músicos, os cineastas que fizeram companhia às pessoas no confinamento”, sublinhou o escritor Tiago Torres da Silva. E a bailarina e coreógrafa Filipa Peraltinha frisou bem a génese do trabalho criativo: “Quando outros forem substituídos por máquinas ou aplicações digitais, ainda cá estaremos a criar, a fazer pensar, a fazer lembrar que os humanos são seres únicos, desformatados e pouco consensuais.”
“Fomos os primeiros a sair de cena e não queremos ser os últimos a entrar. O nosso futuro não pode ser cancelado”, viu-se ainda num vídeo exibido na ocasião.
Fotos: João Lima