Na vida real, Carmen Dolores, que morreu no passado dia 16, aos 96 anos, em Lisboa, era uma mulher discreta, reservada, uma senhora de aparência conservadora, que falava com um tom de voz que tanto podia ser sereno e pausado como vívido e entusiasta e que lhe permitiu tornar-se uma grande declamadora. Quando subia ao palco, no entanto, transmutava-se e passava a ser plenamente a personagem que lhe cabia desempenhar. A cada uma delas dava vida própria, com uma entrega, uma garra e um entusiasmo que de facto fazia sobressair cada traço de personalidade dessas mulheres de ficção de quem vestiu a pele, como se ela própria fosse assim, mesmo quando a personagem lhe era radicalmente oposta. E, como assumia, preferia papéis de mulheres perversas, bem diferentes da sua própria natureza.
Filha de um conhecido jornalista, José Sarmento, Carmen Dolores Cohen Sarmento Veres nasceu em Lisboa em 1924 e cresceu num ambiente que lhe estimulou desde cedo o gosto pela literatura, a música, o teatro. Em jovem, porém, e como contou no seu último livro de memórias, Vozes Dentro de Mim, que publicou em 2017, “pensava ser missionária ou irmã de caridade e, depois, professora”.
A representação surgiu “por acaso”, depois de ter começado por fazer declamação na rádio (a declamação, que nunca deixou de fazer, era uma das suas paixões, tendo, inclusive, gravado discos de poemas), com apenas 14 anos. Aos 19, o consagrado realizador António Lopes Ribeiro convidou-a para o papel de protagonista de Amor de Perdição e dois anos depois estreou-se nos palcos com Eletra, a Mensageira dos Deuses, de Jean Giraudoux, na companhia Comediantes de Lisboa, dirigida pelo próprio Lopes Ribeiro e o seu irmão, Ribeirinho. Descobria, assim, que a representação era o seu destino. E logo em 1948 teve a oportunidade que a lançou em definitivo: entrar para a Companhia Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro, residente no Teatro Nacional. Não tendo feito o conservatório, Carmen Dolores considerava que os anos na companhia do Nacional tinham sido a sua grande aprendizagem.
Seguiram-se 62 anos marcados por imensos sucessos em peças de autores de grande prestígio, como Pirandello, Brecht, Ibsen ou Tchekhov. No cinema, destacam-se dois filmes de José Fonseca e Costa, Balada da Praia dos Cães e A Mulher do Próximo. Fez também algumas séries televisivas, como Claxon e A Viúva do Enforcado, e três aparições em novelas, Passerelle, A Banqueira do Povo e A Lenda da Garça.
Até decidir terminar a carreira, em 2005, tinha então 81 anos, na peça Copenhaga, de Turguêniev, que foi um imenso sucesso, trabalhou com os melhores atores, encenadores e realizadores nacionais e recebeu várias distinções, entre elas a de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, de Grande-Oficial da Ordem do Mérito e a Medalha de Mérito Cultural. Entre a vasta lista de prémios, destaque para o da Casa da Imprensa, por uma das peças que mais desejava fazer, Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams, e o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Teatro, por Copenhaga.
Apesar de preservar a sua vida privada, falava com carinho do marido, o engenheiro Vítor Veres, com quem se casou em 1947, permanecendo casados até à morte dele, em 2011, e sobre o qual dizia: “Casei-me com um homem que adorava o teatro, que admirava a profissão de representar. Isso ajudou-me muito, porque é muito difícil estar casado com uma atriz. Ele foi sempre extraordinariamente compreensivo com os meus problemas profissionais. Até no casamento tive sorte.” E era com um brilho nos olhos de amor e orgulho que falava do seu único filho, Rui Veres, com o qual partilhou casa nos últimos anos de vida. Carmen Dolores foi cofundadora da Casa do Artista.