Nascido no Porto há 44 anos, Miguel Oliveira é investidor imobiliário, mas durante 15 anos também fez coaching motivacional para uma multinacional, o que o levou a viajar um pouco por todo o mundo, sobretudo para países de Leste, tendo tornado Kiev, capital da Ucrânia, na sua base, pela situação geográfica central em relação a esses países. E foi aí que conheceu Mariia Kolotygina, com quem está casado desde 2018 e com a qual tem dois filhos, Lukian, de sete anos, e Gabriel, de dois (Miguel é ainda pai de David, de 13 anos, nascido do seu anterior casamento). A viverem no Porto desde 2019, têm acompanhado os acontecimentos recentes no país natal de Mariia, de 35 anos – designer de visual media e de moda, está neste momento a preparar uma coleção nova –, com angústia, mas também espírito positivo, e contribuído ativamente no acolhimento e na ajuda à adaptação dos refugiados.
Miguel é também vocalista e guitarrista dos One Time Child, banda composta ainda por Rui Silva (também guitarrista) e Hugo Pereira (baterista) e que fez sucesso entre 2001 e 2009, nomeadamente com o tema Ganza na Areia. Em 2009, a vida levou-os por outros caminhos, mas reuniram-se de novo agora, para gravar um tema sobre a guerra na Ucrânia, Russian Military Ship. Uma canção de rock que fala das mentiras que estão por detrás da invasão russa, mas também da esperança de que a guerra acabe depressa e que Putin caia da cadeira do poder. Mariia, que é filha de um russo pró-guerra, cortou relações com ele.
“Quando fazemos coisas boas, recebemos coisas boas em troca. Para mim é mesmo assim que o universo funciona.” (Mariia)
– O Miguel conheceu a Mariia num dos seus eventos de coaching em Kiev.
Miguel Oliveira – Exatamente, e foi mesmo paixão à primeira vista. Ela assistiu à palestra e no fim do dia encontrámo-nos no bar do hotel onde tinha decorrido o evento e ficámos a conversar um bocadinho, mas a coisa ficou por ali. No dia seguinte convidei-a para jantar e ao fim de duas semanas eu ia em trabalho a Paris e disse-lhe para ir ter comigo. E depois as coisas decorreram naturalmente. Casámo-nos na Ucrânia e só viemos para Portugal em 2019, porque desde 2014 que já se sentia uma grande instabilidade na Ucrânia e porque tinha cá o meu filho mais velho.
“Conheci a Mariia em Kiev e foi mesmo paixão à primeira vista.” (Miguel)
– Percebe-se que tem uma ligação muito forte com o país.
– Sim, para mim significa mesmo família, mesmo casa. É um país extraordinário, são muito à frente em muita coisa. Depois gosto da comida, do ambiente, da preocupação deles com a estética. É difícil vermos uma mulher que não esteja cuidada. Para elas, a imagem, a beleza, são prioritárias. E depois têm muito a cultura da literatura, do teatro, da música. E o povo ucraniano é fantástico. São pessoas que trabalham muito, lutam muito e têm muitas competências.
– Entretanto, com a guerra, têm estado muito empenhados na ajuda aos refugiados ucranianos.
– Sim, principalmente nos primeiros quatro meses fomos mesmo muito ativos, quase nem conseguíamos ir a casa, porque tínhamos de apoiar as pessoas que íamos buscar às estações, ao aeroporto, e que depois encaminhávamos para sítios onde pudessem ser acolhidas. E depois havia todo o processo de lhes arranjar casas, escolas, trabalho, de as levarmos ao médico, porque algumas vinham com grandes carências físicas, trazíamos as pessoas para nossa casa, fazíamos festas para se ambientarem, comerem em condições…
– Chegaram sobretudo mulheres e crianças.
– Os homens só podem vir quando há mais de três crianças. Chegavam-nos mulheres com duas crianças com imensas necessidades básicas, crianças perdidas das famílias, esse início foi muito atribulado. Eles estavam completamente destruídos, houve crianças tão traumatizadas que durante semanas não falaram. Algumas não têm notícias do pai há meses, possivelmente porque morreu. Houve mulheres que nos chegaram todas com peças Louis Vuitton, porque na Ucrânia há muitos extremos, gente muito rica e gente muito pobre, e agora não têm nada.
“Houve crianças tão traumatizadas que durante semanas não falaram.” (Miguel)
– A Mariia tem a sua mãe cá, mas tem amigos e família na Ucrânia. Como é que lida com o medo de eles poderem morrer a qualquer momento?
Mariia Oliveira – Essa é uma questão muito complexa, porque há muitas emoções dentro de mim. Sinto muita dor, muita preocupação, é uma tristeza que não tem fim, mas ao longo dos anos trabalhei muito uma filosofia de vida positiva e quando vejo os meus amigos e a minha família que ficaram lá sinto muito orgulho e esperança no futuro. E vamos ter muitas mudanças positivas no mundo por causa dessas pessoas, que têm essa coragem, esse amor pelo nosso país. Penso muito na minha avó, que tem 73 anos e não quis deixar a Ucrânia e continua a ir trabalhar todos os dias, e sinto um orgulho enorme por ser neta de uma pessoa assim. No nosso ADN existe um grande espírito de liberdade.
“Há muitas emoções dentro de mim. Sinto muita dor, uma tristeza que não tem fim, mas trabalhei uma filosofia de vida positiva. ” (Mariia)
– Acham que a comunidade internacional poderia participar mais na ajuda à Ucrânia?
Miguel – Toda a comunidade internacional quer ajudar a Ucrânia, mas, além de fornecerem armas, deveriam fazer mais trabalho humanitário. Porque há muita gente a precisar de muitas coisas. Sobretudo agora, que está a chegar o inverno, que na Ucrânia é muito frio. Aquilo de que eles precisam neste momento com mais urgência é de roupa quente e de sacos-cama mesmo muito quentes, de alpinismo. Porque vão dormir sem aquecimento, por isso precisam mesmo desses sacos-cama. Há pessoas a fazerem fogueiras dentro de casa.
Mariia – Podemos fazer muitas coisas mesmo estando longe. Vai ser pouco, mas várias pequenas coisas fazem muito. Por exemplo, no início da guerra eu estava a sofrer muito porque a minha avó estava sem água, sem luz, sem nada, e depois ajudei uma família aqui e descobri que tinham familiares que moravam no prédio ao lado do da minha avó e que podiam ajudá-la. E ajudaram mesmo. Isto significa que quando fazemos coisas boas recebemos coisas boas em troca. Para mim é mesmo assim que o universo funciona.
– A guerra acabou por reaproximar os One Time Child e surgiu a ideia de fazerem uma música dedicada à Ucrânia.
Miguel – Com todas as vivências que estavam a acontecer, em abril liguei ao outro guitarrista da banda e perguntei-lhe o que é que achava de fazermos uma música dedicada à Ucrânia, porque eu já tinha o texto. E de repente aquele texto encaixou-se numa música em 10 minutos, porque era aquele o dia a dia que estávamos a viver. Entretanto, nesta altura não temos baixista e decidimos não ter pressa em arranjar um, o nosso produtor tem assegurado essa parte, mas não é que acabei por saber de uma refugiada de 15 ou 16 anos que toca baixo muito bem e vamos convidá-la para gravar um videoclipe connosco?
– Ou seja, foi uma boa surpresa.
– No meio disto tudo, há histórias assim, porque a coisa mais importante na vida desta miúda é a música, toca oito instrumentos, e desde que está em Portugal, depois da escola, onde não percebe nada, quando chega a casa refugia-se no instrumento. E é fantástico, porque os membros da banda apoiam-me nisto a 100% e acabámos por encaixar tudo, fizemos uma música para a Ucrânia, uma música sobre uma situação real, com a participação de uma cantora ucraniana com uma voz incrível, a Nastia Balog, que chegou à final do The Voice Ucrânia, e quem sabe agora não teremos uma baixista ucraniana?
“Acho que a letra da música é o espelho do que o povo ucraniano está a sentir neste momento. E é como eu os vejo, eles não desistem.” (Miguel)
– A música foi gravada em inglês, obviamente para chegar a um público mais vasto. E está a chegar.
– Sim, neste momento temos 90 mil visualizações no YouTube e a maior parte das pessoas são ucranianas. E lá há artigos de páginas inteiras na imprensa a falar em nós, o que nos deixa cheios de orgulho. A letra tem algumas frases fortes e eu acho que é o espelho do que o povo ucraniano está a sentir neste momento. E é como eu os vejo, eles não desistem. São de uma coragem incrível, porque são tão pequeninos em comparação com a Rússia mas batem o pé de uma forma extraordinária. E são de uma enorme solidariedade entre eles, são capazes de sair dos bunkers e largarem as suas famílias para irem ajudar alguém sem saberem se conseguem voltar.
– O Miguel também tem uma história muito bonita sobre um menino que joga futebol.
– Eu conhecia a mãe dele de um evento e ela seguia-me no Facebook. E em março enviou-me uma mensagem a pedir ajuda. Tinha conseguido fugir para a Hungria com o filho, de 11 anos, e trouxemo-los para nossa casa. A fugir da guerra, a única coisa que ele trazia na mochila era uma bola de futebol e o equipamento do Dínamo de Kiev, onde jogava há quatro anos. Nesse dia levei-o a um treino do FCP e ele mudou completamente, já não era aquele menino que tinha chegado há quatro horas, parecia que estava a esquecer o que se estava a passar na vida dele. Pedi ao treinador para o ver jogar e ele disse-me que o iam pôr à experiência por três semanas, mas ao fim de uma semana ligaram-me a dizer que ele tinha uma energia fantástica e que iam ficar com ele. É uma história de esperança. E o futuro passa por aqui.
Produção: Patrícia Pinto
Agradecemos a colaboração de Chapitô