A primeira vez que subiu ao palco tinha 17 anos. Foi no Teatro Experimental de Cascais, pela mão de Carlos Avilez, encenador dessa peça de estreia, A Nossa Cidade, de Thornton Wilder. Rita Cabaço tinha os sentimentos à flor da pele. Recorda-se de ter sentido muita adrenalina, de não saber controlar bem as emoções, mas lembra-se, principalmente, de ter tido muito prazer em fazê-lo, o que lhe deu a certeza de que estava no lugar certo. Um lugar que foi conquistando com a sua determinação e talento, aquele que chamou a atenção dos encenadores Marco Martins, Luís Miguel Cintra, fundador do prestigiado Teatro da Cornucópia, e Jorge Silva e Melo, que criou outra companhia de teatro consagrada, a Artistas Unidos.
“Os hábitos culturais deveriam ser incutidos a partir da infância. A Cultura enriquece-nos. Um povo sem Cultura é um povo muito pobre.”
Mais tarde, estreou-se no cinema com o filme Raiva, de Sérgio Tréfaut, seguido de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. E integrou o elenco de séries como Glória, de Tiago Guedes, ou Princípio, Meio e Fim, de Bruno Nogueira.
De sorriso tímido e olhar perscrutador, Rita Cabaço foi percorrendo um caminho sólido, que a levou a fundar, juntamente com quatro colegas, a companhia Teatro da Cidade. Na manga tem alguns projetos que gostava de criar, mas por vezes duvida se terá força e coragem suficiente para os concretizar, pela falta de apoio à área da Cultura. E nem os prémios que lhe foram atribuídos – entre eles o Prémio da Crítica, em 2016, e dois anos depois o da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) e o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Teatro –, embora a deixem orgulhosa, a fazem tirar os pés do chão.
Quando nos deu esta entrevista, estava em ensaios da peça de Beatriz Batarda C., Celeste e a Primeira Virtude, que esteve entretanto em cena no São Luiz, mas a atriz, de 30 anos, conseguiu abrir um espaço na agenda para nos mostrar de que fibra é feita esta mulher que acredita que os hábitos culturais deveriam ser incutidos desde a infância.
“As personagens e os textos vão-me ensinando a ter noção de realidades que não são a minha e que eu não conhecia.”
– Como é que surge a sua paixão pelo teatro?
Rita Cabaço – É uma paixão que se foi desenvolvendo gradualmente. Tinha terminado o 9.º ano e não sabia a área que queria seguir. Como uma das atividades extracurriculares que tinha frequentado era teatro, decidi ir para a Escola Profissional de Teatro de Cascais. Foi aí que comecei a desenvolver esta paixão, a preenchê-la e a aprender a lidar com o sacrifício, a disciplina, o rigor. A aliar o prazer de representar à parte técnica, profissional.
– Chegar a casa e dizer que era a vertente artística que ia seguir rendeu-lhe amuos ou aplausos?
– Os meus pais apoiaram-me. Na altura achavam que seria uma coisa que não teria assim tanto peso na minha vida e que depois eu iria para a universidade. Mas quando concluí o curso fiquei logo a trabalhar no Teatro Experimental de Cascais, com o Carlos Avilez, altura em que decidi que queria ir estudar para o conservatório. Aí eles já não acharam tanta graça, porque queriam para mim uma profissão que me pudesse dar uma vida mais estável financeiramente, mas eu não queria fazer outra coisa. Arrisquei, eles confiaram, e hoje acho que não se arrependem de me terem dado asas para voar.
“Os meus pais queriam que eu tivesse uma profissão mais estável. Mas acho que hoje não se arrependem de me terem dado asas para voar.”
– E a verdade é que teve a sorte ou a oportunidade de se ir cruzando com profissionais de renome.
– Sim, tenho muita sorte pelo percurso que tenho feito até agora, porque me tenho cruzado com pessoas que admiro muito, que me ensinam muito e que me vão permitindo continuar aqui nesta área, que é tão difícil de manter. Trabalhar com tão bons profissionais é o maior privilégio que eu posso ter neste meio.
– Como é que tem percorrido este caminho? Arriscando ou, pelo contrário, dando passos calculados?
– O processo tem sido bastante natural. A maioria das vezes aceito pelas pessoas com quem vou trabalhar, pelo que elas me transmitem, e por acreditar no projeto.
– Tem trabalhado muito para reconhecerem o seu talento, o que já lhe rendeu alguns prémios. Que significado é que lhes atribui?
– Alimentam-me o ego, fico contente por ver o trabalho ser reconhecido e verdadeiramente feliz porque, para me atribuírem determinado prémio, tiveram de ver o meu trabalho, gostaram e acharam que eu merecia o reconhecimento. No entanto, os prémios não me iludem, principalmente neste país. Não me fazem pensar que sou a maior ou a melhor, não me põem num lugar superior ao de ninguém. Fico muito orgulhosa, mas não mais orgulhosa do que quando vejo uma sala cheia, no final do espetáculo, a aplaudir.
– E depois é uma pena ver que a intervenção do Estado no setor cultural continua a ser muito parca…
– Continua e vai ser assim até mudar o paradigma. O apoio continua a ser escasso porque as pessoas não acreditam que a Cultura é tão essencial como outras coisas que lhes são importantes. A Cultura deveria ser incutida desde a infância, tem de partir de um hábito.
– Acha que grande parte da culpa é nossa, do público, que não dá o devido valor à cultura?
– Acho que são escolhas. Para algumas pessoas, ver uma peça de teatro é tão distante que nem pensam como pode ser verdadeiramente transformador. Por isso é que acho que se devia estimular hábitos culturais a partir da infância. A Cultura enriquece-nos. Um povo sem Cultura é um povo muito pobre, muito pequenino.
“Trabalhar com tão bons profissionais é o maior privilégio que eu posso ter neste meio.”
– Então, apesar do sucesso, há também um certo desalento no percurso?
– O desalento está presente nesta profissão quando vemos o tão escasso apoio que o setor cultural tem. Depois, num plano mais individual, o desalento pode surgir comigo própria ao achar que poderia ter feito melhor, que poderia ter ido mais longe. Estamos sempre a jogar com as conquistas e derrotas. Este lugar de escuta permanente é fundamental para não estagnarmos.
“Para algumas pessoas, ver uma peça de teatro é tão distante que nem pensam como pode ser verdadeiramente transformador.”
– Há o tal espírito de sacrifício na classe.
– Além do que já falei, que se prende com o sacrifício a nível financeiro, há também, por exemplo, na forma como nos entregamos aos projetos e temos de sacrificar o nosso tempo, a nossa vida pessoal.
– Sente que se tem privado de alguma coisa?
– Sim, o facto de não termos contratos de trabalho dificulta muito a vida. Ainda não consegui comprar uma casa, por exemplo. Agora, então, é impossível. E não sei se um dia conseguirei, e às vezes é angustiante. Eu só quero ter uma vida normal. Uma casa, já nem falo em comprar. O ordenado não chega nem para alugar, porque os preços são exorbitantes. O facto de poder estar algum tempo sem trabalho obriga a uma grande gestão financeira, por exemplo. Até aqui tenho tido muita sorte, sou uma privilegiada por estar num lugar seguro em que vou tendo trabalho, mas reconheço que é preciso muita paixão para continuar a ser atriz.
– Algum dia se arrependeu de se ter apaixonado pela arte de representar?
– Não, ainda não me arrependi. Não digo que não possa vir a acontecer, mas acho que não. Não sei se vou fazer isto toda a minha vida. Apesar de ser angustiante muitas vezes, exaustivo e cansativo, já ninguém me tira tudo o que já vivi até agora, as pessoas com quem me cruzei, com quem trabalhei.
– O que é que o teatro tem trazido à sua vida pessoal?
– Estar bem comigo. Quando encontras uma profissão de que gostas e que te preenche e sentes que é aí que deves estar, isso é uma grande ajuda para te sentires bem contigo própria. Tem-me possibilitado conhecer-me cada vez mais, cruzar-me com pessoas que me transformam, que me ensinam muita coisa, que me comovem.
“O facto de os atores não terem um contrato de trabalho dificulta muita a vida. Ainda não consegui comprar uma casa, por exemplo.”
– Investe muito de si nas personagens. As personagens também a enriquecem?
– Sim, mesmo que eu não tenha essa noção, fica tudo guardado no “disco rígido”. As personagens e os textos vão-me ensinando a ter noção de realidades que não são a minha e que eu não conhecia, e isso vai-me alimentando de mundo, de vidas, de formas de pensar diferentes.
– O cinema e as séries televisivas chegaram uns anos depois. Falta-lhe fazer novelas. É uma possibilidade?
– Não tenho preconceito nenhum com qualquer tipo de formato. A minha escolha faz-se não só pelas pessoas como pelo projeto em si, um projeto que me entusiasme e que eu ache que possa ajudar. A ideia que tenho é que é muito difícil fazer televisão e admiro quem o faz bem.
Agradecemos a colaboração de Jewels by G, Kiabi, Leonardo Garibaldi, Liviana Conti, Manuela Garibaldi, Psophia, Quinta de Miramar – Senhor Manuel e The Board
Maquilhagem e cabelos: Madalena Martins