Conhecido pela sua forma única de interpretar pratos tradicionais portugueses, Vítor Sobral é uma referência da gastronomia nacional. Desde criança que valoriza uma mesa farta, com gente feliz à sua volta, a brindar à vida e a saborear momentos inesquecíveis. Por isso mesmo, e também por continuar a ser verdadeiramente apaixonado pela arte culinária, não dá sinais de querer encostar o avental. Foi o que nos garantiu nesta conversa partilhada com o filho mais velho, Rodrigo, de 33 anos, com quem trabalha no seu mais recente e ambicioso projeto de restauração: a Lota da Esquina. Situado na baía de Cascais, este espaço gastronómico conta com dois mil metros quadrados, distribuídos por dois pisos, de parte do edifício da Docapesca, que abriu as suas portas há um ano. “Era para abrir antes da pandemia, depois houve aqui umas peripécias… Eu tenho alguma experiência em inaugurações, mas esta foi uma caminhada dolorosa”, assume o cozinheiro, que, além deste espaço, coordena ainda a Tasca da Esquina, a Taberna da Esquina e o Pão da Esquina, em Lisboa, assim como a Oficina da Esquina, na ilha Terceira, e a Tasca da Esquina, em São Paulo, Brasil. “E ainda consigo escrever livros, ser consultor de algumas empresas e fazer eventos. Na verdade, eu fico infeliz é quando não tenho trabalho. Quando tenho trabalho, tudo corre muito bem”, assegura Vítor Sobral, que, além de Rodrigo, é pai de Tomás, de 18 anos, e de Manuel, de sete, todos eles de diferentes relacionamentos, e ainda avô de Antónia, também de sete anos, de quem fala com a maior ternura.
– Trabalha com o seu filho mais velho neste projeto. É fácil separar a relação familiar da de sócios?
Vítor Sobral – Nunca é fácil passar relações emocionais para o contexto profissional. O Rodrigo não vai deixar de ser o meu filho e eu nunca vou deixar de ser a pessoa que sou. Dificilmente deixo por dizer alguma coisa a alguém, muito menos ao meu filho. E isso, quer queiramos, quer não, cria alguma pressão. Há uma coisa que está sempre presente: eu sou o pai e não deixo nunca de ser o chefe, alguém que coordena, nos bons e nos maus momentos, que tenta proteger quem está à nossa volta. Mas trabalharmos juntos também tem coisas boas: gostamos de dividir um vinho especial, de ir a outros restaurantes, de viajar, mas claro que a parte profissional se mistura sempre com os momentos de lazer.
– Acaba por vos aproximar mais?
– Sem dúvida que sim. Ele não trabalha na cozinha, mas não deixa de estar ligado à restauração. Trabalha na sala, por causa de um “acidente de percurso” da vida dele. O culpado sou eu, porque o levei ao casamento de um amigo meu no Brasil e ele apaixonou-se. Tinha 17 anos. Na altura queria que ele fosse estudar para Inglaterra, mas ele quis ir atrás do amor e ficou no Brasil.
– Terá a quem sair? O Vítor também parece perder-se de amores de vez em quando…
– É verdade que já me perdi muitas vezes de amores. Tenho três filhos, com idades completamente díspares, de mulheres diferentes. Mas eu, ao contrário do Rodrigo, cedo soube o que queria fazer. Tornei-me empresário por acidente, porque a minha formação é em cozinha. Sou cozinheiro e tudo o que veio a seguir, as coisas boas e as menos boas, veio em função do meu objetivo de cozinhar.
– A cozinha continua a ser uma paixão?
– Continua. O que me faz sofrer hoje em dia é essa paixão… As minhas equipas têm uma forma de trabalhar exatamente igual: o tomate que se usa nos cozinhados é sempre sem pele e sem grainha, o pimento é descascado, os alhos são laminados de determinada maneira, e é assim que funciona em qualquer um dos meus restaurantes. E muitas vezes sofro porque o cliente não tem perceção destas coisas. Quando pede um arroz de peixe, o cliente não percebe que há quem faça parecido, mas o tomate é de lata, não há o cuidado de acrescentar as ervas aromáticas só no fim, para que não percam o aroma, nem a cor, e esta parte de cozinheiro é aquela que ainda hoje mais me faz sofrer. Gostava que houvesse, da parte dos clientes, uma perceção do esforço que se faz para se manter um determinado tipo de padrão.
– Se não fosse cozinheiro, o que gostaria de ter sido?
– Poderia ter sido juiz. Gosto muito do senso de justiça.
– A idade tem ajudado a suavizar a sua veia mais contestatária?
– Suaviza. Quando somos mais jovens, a luta é mais feroz. Essa “revolta” é como se fosse uma panela a ferver em lume muito forte que depois, com a idade, continua a ferver, mas num lume muito mais brando. Tive o privilégio de conhecer muitas pessoas, de viajar por muitos países, e faz-me muita confusão que se perca tempo a discutir na praça pública temas que não têm importância nenhuma para a população em geral. O que os contribuintes querem é ter um comboio de velocidade rápida, um aeroporto com maior capacidade, deveria haver uma maior preocupação com a escassez de água – desperdiçamos a água da chuva, a que se usa nos banhos poderia ser aproveitada para as descargas do autoclismo, por exemplo –, todas estas coisas que hoje são pertinentes e ninguém fala muito delas. Toda a gente quer as florestas limpas, mas depois têm gás em casa em vez de terem lareiras ou fogões a eletricidade, uma energia muito mais limpa. Eu recuso-me a ter fogões e grelhadores a gás nos meus restaurantes porque acho que a minha contribuição, enquanto cozinheiro, passa por gastar os resíduos que as florestas têm, contribuindo para a limpeza das florestas de forma sustentável. Todas estas coisas, apesar de a panela não estar a transbordar, não deixam de incomodar.
– Como é que tem sido educar filhos com idades tão diferentes?
– Tudo tem vantagens e desvantagens. O Rodrigo, de alguma maneira, foi o que mais sofreu na parte da infância, porque eu era muito jovem, estava em início de carreira, e talvez lhe pudesse ter dado mais atenção. Por outro lado, também teve os benefícios de ser um filho muito próximo do pai, pois há entre nós uma cumplicidade que só se consegue ter em idade adulta. O irmão do meio, o Tomás, está a estudar Marketing e é aquele que terá uma tarefa mais difícil, porque tem 18 anos e está numa fase em que não sabe muito bem o que é que vai querer fazer da vida. É aquele que, na verdade, mais me preocupa, embora dos três seja aquele que, eu diria, tem a capacidade mais dócil no relacionamento com as pessoas. O mais pequeno, o Manel, está numa fase maravilhosa, vive no mundo dele, quer é brincar. E há ainda a Antónia, a filha do Rodrigo, que é pouco mais velha que o Manel, e os dois formam uma dupla imbatível. Todos eles têm uma coisa em comum fantástica, que é gostarem muito de comer e beber coisas boas. A mesa sempre foi uma forma de nos aproximar, de nos unir.
– Concorda que cozinhar para alguém é um ato de amor?
– Claro que sim, pois é uma partilha. Estamos a dar uma parte de nós, a proporcionar momentos de prazer e bem-estar aos outros, mas também nos alimenta ao nível das nossas emoções. É também um bálsamo importante para o nosso ser, para a nossa pessoa.
– Está mais magro.
– A razão não é boa… Tenho uma gastrite crónica nervosa desde os 20 anos e, quando entrei na casa dos 50, o médico avisou-me que ou começava a ter mais juízo ou as coisas iriam tornar-se mais difíceis.
– Quanto é que perdeu? Teve de aprender a ser regrado também com o peso?
– Perdi mais ou menos 30 quilos. Hoje peso cerca de 80 quilos, antigamente o meu peso oscilava entre os 106 e os 110 quilos.
– Foi muito custoso ter que se privar de coisas que lhe sabiam bem?
– Foi muito custoso, mas confesso que houve uma coisa que me custou muito mais do que fazer tudo isto…
– Que foi…
– Eu estava a ficar meio careca e decidi fazer um transplante capilar. E o processo de tirar de um lado para colocar no outro foi muito doloroso. Só o fiz depois de me ter visto na televisão, parecia que tinha uma pista de aterragem de helicópteros que não me agradava nada. E não olho para trás quando acho que posso fazer alguma coisa para melhorar.
– É um homem feliz?
– Sim. Ninguém é feliz a 100%, mas como poderia dizer que não sou feliz se faço o que gosto de fazer e tenho a família que tenho? Sem dúvida que tenho muito mais momentos de felicidade do que de infelicidade. .