Nasceu e cresceu no Porto, numa família de mulheres, na qual a avó materna teve sempre um peso muito especial. Filha única, mas destemida desde cedo, mudou-se para Lisboa com 18 anos à procura de oportunidades na representação, que se lhe cola à pele, e tem feito o seu caminho cada vez mais segura de quem é e do que quer. Em exibição a série A Filha, na TVI, a atriz Dalila Carmo revelou-se abertamente nesta conversa com a CARAS.
A quatro meses de completar 50 anos, número com o qual pretende “coabitar” sem dramas, falou sobre o seu ofício, as suas certezas e inquietudes num mundo que considera cada vez mais louco, não esquecendo o que lhe é mais importante: as suas pessoas e a paixão pelas viagens, que lhe permitem respirar entre trabalhos.
– Estreou a série A Filha. É tempo de abrandar ou de seguir para um novo projeto?
Dalila Carmo – A Filha já está gravada há muito. Tive tempo para parar, viajar e regresso ao trabalho agora, na nova temporada de Morangos com Açúcar, que começo a gravar em breve. Tenho trabalhado a um ritmo mais saudável do que a loucura dos últimos anos antes da pandemia. Moderei tudo na minha vida e escolhi ter outros ritmos, porque é importante privilegiarmos a saúde e uma vida fora do trabalho.
“Sempre fiz interrupções grandes no final de cada trabalho. É uma liberdade a que me permito pelo facto de não ter filhos.”
– Foi a pandemia que a fez pensar nessa mudança de forma de vida?
– Na verdade, sempre fiz interrupções grandes no final de cada trabalho. É uma liberdade a que me permito pelo facto de não ter filhos. Obrigo-me a fazer distanciamentos, porque um ator é um observador de vidas, e se nós, de repente, ficarmos ligados a uma máquina, tornamo-nos na própria máquina e perdemos discernimento. Mas nos últimos anos senti um desgaste físico e psicológico grandes. De facto, com a continuidade, o nosso “aparelho” vai avariando. E depois, com a pandemia, levámos todos uma pancada e percebemos a urgência que há em identificar prioridades, valorizar de uma forma qualitativa, privilegiar as nossas pessoas, que não estão cá para sempre. Temos de cuidar da nossa vida de muitas formas. E nunca fui viciada em trabalho. Para mim representar é vital, quase uma doença, sou obsessiva quando trabalho, mas quando termino faço uma espécie de detox. Vou para o mundo e estou com as minhas pessoas. Tenho de fazer esse balanço. Não tenho a ganância de fazer tudo e de estar sempre a aparecer.
– Não tem medo que se possam esquecer de si quando se afasta?
– Não sei responder com honestidade a essa pergunta. Quando estou fora muito tempo, e vivi fora de Portugal várias vezes, tenho medo, mas quando estou cá não tenho. Se calhar, isso está associado ao facto de sentir que ainda não me esqueceram.
– Ter vivido fora levou-a a ponderar deixar de ser atriz?
– Às vezes digo: “vou desistir”, mas é da boca para fora. Não me imagino a fazer mais nada que não seja representar, tenho a minha profissão escrita em mim da ponta do cabelo à ponta do pé. É muito difícil programar-me noutro sentido. E é com pena que digo isto, pois gostava de ter um plano B. Esta profissão é precária.
– Essa precariedade angustia-a?
– Angustia-me muito. Passo a vida a pensar em planos B e C, porque merecemos uma vida digna. Sobretudo quem tem um perfil mais solitário, como é o meu caso, pensa como é que vai construir a vida daqui para a frente. E eu gosto tanto de estar sozinha!
– Gosta?
– Muito. Eu, que tenho medo de tudo, de doenças, de hospitais, não tenho medo de caminhar sozinha em todos os sentidos. Viajo muitas vezes sozinha e gosto. É um paradoxo, mas é como sou. Aí, sim, tenho as janelas abertas para o mundo, e fico numa comunicação direta com o que estou a ver, sem interferências nem intermediários. São para mim momentos muito felizes.
– As viagens são o melhor que tem na sua vida?
– Não são o melhor, mas são oxigénio. O melhor da minha vida é a combinação do meu silêncio com as minhas pessoas e a minha profissão. Ser atriz é a forma como me realizo mais. As viagens vêm a seguir, e é neste balanço que gosto de viver. Já viajo há tanto tempo que não me vejo sem o poder fazer. Aos 20, fui estudar para Nova Iorque sozinha e não me custou. A maior transição que fiz foi do Porto para Lisboa. Tinha 18 anos e foi a minha emancipação.
– O que a fez mudar-se para Lisboa?
–O facto de haver mais ofertas de trabalho. No Porto sentia-me muito apertada. Na altura, era uma cidade muito feudal e eu queria uma coisa mais cosmopolita, sair rapidamente dali e emancipar-me.
– Vivia com a sua mãe e a sua avó. Elas apoiaram-na?
– Apoiaram-me, pois. Hoje em dia a minha mãe mora em Lisboa e já não tenho a minha avó, de quem sinto muita falta. Sempre fomos as três. Esse é o meu território intocável. As minhas relações mais próximas e familiares são o meu território sagrado, do qual nunca falo, pela liberdade deles, não só pela minha. São as minhas pedras basilares e não querem ter qualquer visibilidade.
– É esse lado mais resguardado que leva a que alguns colegas digam que se põe à parte?
– Acho que sim, porque na verdade não sou nada reservada e falo imenso. Agora, de facto, não sinto que tenha de fazer parte da cultura do positivismo, em que temos todos de ser muito divertidos, otimistas, muito giros, sempre a mostrar o quão maravilhosa é a nossa vida. Na verdade, quando estou a trabalhar, estou muito concentrada e focada, não converso tanto, e quando acabo o trabalho desapareço, viajo ou fecho-me no meu ciclo de pessoas. O social cansa-me muito, as festas, os eventos. Não há nada a fazer. É a minha forma de ser.
“A data de aniversário é como o ano novo, faço uma retrospetiva do que aconteceu e, de facto, com a chegada dos 50 esse balanço traz outro peso.”
– Está prestes a completar 50 anos. Deu por si a fazer algum balanço?
– A data de aniversário é como o ano novo, faço uma retrospetiva do que aconteceu e, de facto, com a chegada dos 50 esse balanço traz outro peso. Há um medo de que as nossas “peças” avariem. Mas não tem só a ver com a pele ou com as rugas. Basicamente, nesta altura da minha vida a grande questão é se terei algum impeditivo para exercer a minha liberdade, de que forma é que o tempo me pode impedir de exercê-la. A minha liberdade de andar sozinha quilómetros pela montanha, a minha liberdade de fazer o meu trabalho e voltar para casa sozinha à noite. É nisto que estou a ponderar. Depois, não digo que o fator vaidade seja totalmente posto de parte. Não sou refém dela, mas é óbvio que existe esse peso.
– Decidiu que não queria ser mãe. Continua confortável com essa escolha?
– Muito confortável. Não há qualquer margem de arrependimento. Felizmente, cada vez mais as mulheres libertaram-se desse sentimento de culpa. Cada uma sabe o que é melhor para si, não tem de haver uma convenção social.
– Assusta-a pensar que já viveu mais do que ainda irá viver?
– Assusta-me, porque adoro estar viva. Gostava de ter alguma dose de esoterismo ou religiosidade que me ajudassem, mas não tenho. Sei que a passagem é efémera. E assustam-me as perdas. Não nos perdemos a nós próprios, mas perdemos os outros, os nossos pilares. Ainda assim, a vida para mim é sempre como estar na primavera. Não acho que tenhamos forçosamente de entrar em outonos.
Produção: Patrícia Pinto
Maquilhagem e cabelos: Mariana Palaio para Guerlain
Agradecemos a colaboração de Ler Devagar e Loja das Meias