Há mais de uma década que Mariana Caldeira, de 35 anos, é psicóloga clínica, depois de ter concluído a sua formação na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Em 2021 abriu uma clínica online e tem, também, uma página de Instagram, com 36 mil seguidores, e um podcast (Im)perfeitamente, em que partilha os seus conhecimentos sobre saúde mental, sobretudo sobre o impacto que as famílias e experiências de vida têm na forma como cada um de nós se relaciona com os outros. Agora, publicou o livro Tudo o que se Passa aqui Dentro, sobre como curar feridas emocionais e reconstruir relações em famílias tóxicas.
Mãe de Afonso, de três anos, grávida de uma menina, e cuidadora desde que se conhece, a psicóloga deixa claro que a infância nos define e marca para o resto da vida.
– O que a levou a escrever este livro?
Mariana Caldeira – Há dois anos criei uma página de Instagram onde vou partilhando reflexões, conhecimentos e, na altura do Natal, falei sobre o peso que é viver esta quadra com famílias que não são assim tão boas. Senti uma identificação gigante das pessoas com este tema. Claramente, era algo de que precisávamos de falar com urgência. E cá estou eu a tentar desconstruir estas crenças de que família é família, família é sagrada. Nem sempre é. Espero que quem ler este livro possa tirar peso de cima.
– Como descobrimos que, afinal, muitos de nós temos traumas de infância?
– Primeiro, é preciso entender que dentro das nossas casas se passa muita coisa que ninguém imagina. Às vezes, nem nós próprios, porque é tão familiar que nem percebemos que não é normal. E depois, perante a descoberta que acontece em comparação com os outros ou em terapia, as pessoas sentem um alívio gigante quando percebem que, afinal, o problema não são elas e que é possível desconstruir o conceito de família. As famílias não são perfeitas, não há mães e pais perfeitos, e há famílias que não são, de facto, boas. Esta realidade existe mais do que imaginamos. Até as famílias saudáveis têm as suas questões.
– Vivemos numa sociedade de famílias disfuncionais ou caminhamos no sentido inverso?
– Há de tudo. Não posso dizer que, hoje em dia, haja mais famílias disfuncionais do que no passado. O que posso assegurar é que há cada vez mais consciência do impacto que a saúde mental tem em nós e acredito que isso, ao longo dos anos, nos vai permitir melhorar. As gerações atuais são as que vêm quebrar ciclos. É um peso enorme, mas que nos permite estar otimistas de que as próximas já não vão carregar os mesmos pesos. Não batemos nos nossos filhos, logo, estes já não vão bater nos deles. E isto é uma grande mudança. Mas haverá sempre famílias disfuncionais ou situações disfuncionais em determinado momento.
– O que a leva a fazer essa afirmação?
– Vivemos num ritmo muito acelerado, temos imensas responsabilidades, horários loucos, portanto, é muito difícil mantermos a sanidade mental se não cuidarmos de nós. E como vivemos com o “piloto automático” ligado, é complicado pararmos e questionarmos. Temos pais muito desconectados deles próprios, que estão só a sobreviver, e as crianças são exigentes, precisam de atenção, tolerância e flexibilidade. É perigoso e pode ser uma bola gigante.
– Que importância tem a infância na vida futura?
– Todos nós tivemos uma infância que nos molda. Todos temos feridas, traumas e, muitas vezes, desvalorizamos e dizemos que tivemos uma infância feliz. A verdade é que não há infâncias perfeitas, por muitos momentos felizes que tenhamos tido. Há sempre coisas que falharam e que nos marcam e condicionam na idade adulta. A forma como os nossos pais falaram connosco e nos trataram tem grande impacto na maneira como, em adultos, olhamos para nós. Ainda temos medo de elogiar, achamos que temos de preparar crianças para a adversidade e que isso exige dureza, mas, pelo contrário, para prepararmos alguém temos de lhe dar amparo. Se quisermos resumir, a infância não nos condiciona totalmente, mas condiciona-nos completamente.
– É a bolha de amor que nos torna mais confiantes?
– Sim. Para sermos capazes de dizer não temos de ser confiantes, e essa confiança advém dessa segurança que os pais transmitem. Não podemos proteger os nossos filhos de tudo, mas podemos dar-lhes ferramentas para lidarem com o que vier.
– Por que é que o peso que as mulheres carregam é maior do que o dos homens?
– Porque ainda vivemos numa sociedade patriarcal. Há sempre um peso diferente na mulher. E é curioso que, em famílias onde existe uma maior igualdade, esses homens são muitas vezes malvistos e gozados entre amigos. Socialmente, ainda temos um grande caminho pela frente na igualdade de género e de papéis.
– É inevitável perguntar-lhe como se vê como mãe.
– Ser mãe traz-me outra perspetiva. Tenho a sorte de vir de uma família que tem um fundo saudável e o facto de ser mãe trouxe-me ainda outra garra para fazer o meu trabalho, pois não consigo imaginar os meus filhos a passarem por aquilo que muitas pessoas que conheço passam. Isso dá-me muita energia e coragem. Agarro-me à certeza de que todas as crianças merecem ter uma vida mais leve. Com os meus filhos, faço o meu melhor, tento não me culpabilizar, que é uma coisa que, nós mães, fazemos muito, e dou espaço para que o meu filho fale. Em família, é preciso falar, aceitar as birras das crianças, que são tão válidas como as que os adultos fazem, podem estar tristes e zangadas. Ser mãe é um jogo de cintura gigante.