Foi no Teatro São Luiz, palco da última peça a que deu vida, Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco, que marcámos encontro com Rita Loureiro. Com 55 anos de vida e 35 de carreira, a atriz, que atualmente podemos ver na novela Senhora do Mar, da SIC, admite que, mais do que em televisão ou no cinema, é no teatro que encontra oportunidade para a autoconfrontação e crescimento pessoal. Por isso, apesar do esforço que representa conciliar os ensaios de uma peça de teatro com as gravações de uma novela, que no caso de Senhora do Mar obriga ainda a deslocações regulares aos Açores, Rita não consegue recusar um bom desafio teatral, como o foi Deus, a personagem a que deu vida na peça dirigida por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu, com base num texto de Maria Quintans dedicado ao realizador sueco Ingmar Bergman.
– Esta peça esteve apenas quatro dias em cena no São Luiz. Não será pouco tempo, tendo em conta os meses de preparação que exigiu?
Rita Loureiro – É muito curto, sem dúvida nenhuma, para o trabalho todo que tivemos, para a dimensão da implicância de cada artista naquilo que faz. A janela para o mostrar é muito curta porque a política cultural é uma política de cosmética. Querem mostrar que fazemos muita coisa, mas na verdade não se dá o tempo, a importância e o valor que as coisas merecem efetivamente.
– Dar vida a um Deus que é mulher é uma opção criativa.
– Pois, convencionalmente Deus é homem, mas este é uma mulher. É muito interessante esta abordagem, de facto, e este texto da Maria Quintans também é maravilhoso. Tem frases muito certeiras, argutas e muito cruéis, porque são verdades.
– Quer partilhar alguma que tenha ficado mais marcada na sua mente?
– Tenho várias. Deus tem um pequeno solilóquio em que diz que é várias coisas. “Sou o milagre de todos os peixes, sou o pão por Deus dos desgraçados, sou o sustento animal dos alienados.” Isto são frases brutais. “Sou a estratégia de toda a perversão, sou o braço direito do paraíso da fome.” Tudo isto dá pano para mangas.
– Como é que se prepara uma personagem que é Deus?
– O que nos inspira sempre, o que nos conduz, é a palavra. Começamos por fazer uma análise dramatúrgica do texto e só depois passamos para o corpo. Claro que muito de nós, da nossa sensibilidade, da nossa noção do que é estar aqui, interfere com o processo criativo. E uma das coisas que me chamou a atenção logo na segunda ou terceira semana de ensaios foi a frase “Deus é um ato falhado”. Comecei a trabalhar muito nesta dor, de como é que se é Deus tendo-se a perfeita consciência de que se é um ato falhado, e foi a partir disto que comecei a construir a minha personagem e a minha participação.
– E qual é a sua ligação com a religião?
– Não sou católica praticante. Tenho fé, acredito no Universo, nas energias, na vibração e nessa necessidade de crença, porque às vezes nos salva, porque é fundamental. Se quisesse definir a religião, há duas palavras que são, para mim, a religião: Natureza e amor.
– Ainda se sente indisposta antes das estreias?
– Indisposta não, fico nervosa. Só me aconteceu uma vez na vida ficar mesmo muito maldisposta antes de entrar em cena, mas foi porque não acreditava no espetáculo. Não me identificava, não estava satisfeita comigo e os nervos passaram a ser uma coisa física muito desconfortável e angustiante. De resto, fico sempre nervosa antes de entrar em cena e também costumo dizer sempre que, no dia em que não ficar, é porque desisti.
– O nível de nervosismo é proporcional ao nível de responsabilidade?
– Sim, de responsabilidade e de excitação. O nervoso é transformado em energia de palco, é aquela coisa de correr riscos, de ali estarmos todos sem rede.
– É no palco que se sente mais à-vontade?
– À-vontade não diria, mas é onde gosto muito de estar. Costumo dizer que o teatro, para mim, é como se fosse uma reciclagem. Obriga-me a confrontar-me com as minhas fragilidades e inseguranças de uma forma a que, se calhar, a televisão e o cinema não chegam da mesma maneira. E, para mim, é muito importante esse desafio.
– Porque a ajuda a crescer?
– Exatamente. Porque me faz ter uma consciência mais aguda de mim e dos outros.
“Faço uma espécie de meditação espontânea, porque gosto de estar deitada no sofá, de papo para o ar, a olhar para o teto, sem aparentemente pensar em nada.”
– O medo, a morte e o silêncio são alguns dos demónios do Bergman abordados nesta peça. É também assombrada por algum destes temores?
– Claro que sim. Quem não? O medo é até uma defesa. Se não houver medo, corremos seriamente riscos de vida. O silêncio também é algo que me assola muito. Gosto de estar em silêncio, sozinha e sossegada na minha bolha. Costumo dizer que faço uma espécie de meditação espontânea porque gosto de estar deitada no sofá, de papo para o ar, a olhar para o teto, sem aparentemente pensar em nada. A morte, claro, também é uma coisa que nos assusta. Não tanto a minha, francamente, mas a morte de pessoas de quem gosto muito e que me fariam muita falta.
– Continua a ter muita paixão por aquilo que faz?
– Só pode ser assim. Muito francamente, é mesmo onde sou mais feliz, é quando estou a representar.
– Diz ter a cabeça em permanente turbilhão. É uma coisa contra a qual tenta lutar ou já convive bem com a criatividade a dar sinais a toda hora?
– Quando estou a trabalhar, a minha cabeça não pára, é verdade. E, lá está, uma das coisas que me agrada no teatro é que esse turbilhão vai-se arrastando. No cinema e em televisão é tudo muito mais efémero. Em teatro, desde o início dos ensaios até ao último dia do espetáculo, a criatividade está sempre superativa. E eu fico nesse turbilhão, de ter imensas ideias durante a noite, de estar sempre a pensar nas coisas.
– Em tempos queixou-se da dificuldade em lidar com os desafios da adolescência, fase pela qual a sua filha [Francisca, de 19 anos] estava a passar. Conseguiram apaziguar a relação de mãe e filha?
– Sim. Ela estava num processo de pré-adolescência e eu estava num processo de pré-menopausa. Era uma conjugação dificil. Neste momento a nossa relação está ótima. Todas as mães têm de fazer esse exercício de pensar que já fomos adolescentes, já passámos por aqueles sítios, emoções, questões, por aquela necessidade de sermos nós contra o mundo, de afirmação, de conquista de espaço. E essas dores de crescimento, às vezes, não são nada fáceis. Portanto, é uma questão de fazer um exercício de empatia e despertar também do outro lado essa empatia, porque eu também aprendo muito com ela.
– Falando de Senhora do Mar, a sua personagem abdicou da carreira profissional para se dedicar à família, tal como a sua mãe o fez. Este exemplo pessoal serviu de inspiração ou nem sequer fez essa relação?
– Não há uma inspiração direta, mas de facto há aí um paralelismo. Acho que esta Madalena é representativa de muitas mulheres que, infelizmente, abdicam da sua carreira e de certas ambições para se dedicarem só ao amor dos filhos e do marido.
– Como está a sua relação com a imagem? Já não se incomoda tanto ao pensar que as pessoas podem gostar de si só por ser uma mulher bonita?
– É impossível acharem-me só uma cara bonita, porque eu desfaço essa ideia rapidamente [risos]. Agora já tenho uma segurança, uma confiança em mim e alguma demência também, uma certa loucura que a idade nos traz, que tornaria impossível acharem-me só uma cara bonita.
Maquilhagem: José Teixeira/Dior
Styling: Ana Campos
Agradecemos a colaboração de Bash, Psophía, Lion of Porches, Liviana Conti e São Luiz Teatro Municipal