Na casa de Maria de Vasconcelos, de 53 anos, reina a boa-disposição e sentido de humor entre todos os membros da família, mesmo nas fases mais desafiantes. Num momento em que lança um novo projeto de As Canções da Maria, desta vez um especial corpo humano, a psiquiatra, o marido, Xavier Colette, de 54 anos, com quem partilha a vida há quase três décadas, e as filhas, Mathilde, de 20, que estuda Design, e Manon, de 18, estudante de Arquitetura Paisagista, conversaram com a CARAS sobre a união especial que têm entre todos em palco ou fora dele. Abriram também o coração para falar, pela primeira vez, sobre a luta de Xavier contra um cancro do pâncreas, diagnosticado há dois anos. Mais uma vez, a grande arma da família foi a positividade com que encara a vida.
– Têm mais um projeto das Canções da Maria.
Maria de Vasconcelos – É verdade. Já estava na calha desde o História de Portugal, que lançámos há sete anos, mas foi uma maratona de barreiras. Houve a pandemia, depois sobressaltos com a saúde do Xavier, mil outras coisas que aconteceram. Enfim, demorou, mas está cá fora e é um belo bebé.
– Um trabalho de família que começou por causa das suas filhas.
– Elas são a primeira razão deste projeto, que começou quando vinham da escola muito pequeninas a falar da matéria que estavam a aprender e eu comecei a pô-la em canção para lhes facilitar a aprendizagem. Só depois achei que podia exportar isto para fora de casa. O primeiro trabalho foi lançado em 2012, já passaram 12 anos. Neste último, há uma novidade: os desenhos anatómicos são da Mathilde. É muito giro tê-la também a colaborar desta forma. Na verdade, quando comecei a fazer as Canções da Maria nunca imaginei onde isto nos iria levar. Tem sido uma viagem maravilhosa.
– Apesar de já serem adultas, a Mathilde e a Manon continuam a gostar de participar neste projeto?
Mathilde – Sim, porque é uma coisa que fazemos em família e nós somos mesmo os melhores amigos. Eu a minha irmã damo-nos muito bem e contamos tudo aos nossos pais, fazemos imensa coisa com eles, queremos que participem, portanto, podermos fazer este projeto os quatro é maravilhoso. Divertimo-nos muito a fazer as Canções da Maria. A minha mãe não faria isto sem nós, porque temos muita graça [risos].
Maria – É verdade que somos todos muito cúmplices. Divertimo-nos realmente todos juntos e temos uma grande admiração uns pelos outros. Claro que refilamos imenso também, não somos nenhuns santos nem a família perfeita, mas somos uma família feliz, sem dúvida. Em geral, estamos sempre bem-dispostos. Somos uns privilegiados em todos os sentidos, não apenas neste trabalho.
Manon – Somos unidos e adoramos estar juntos em qualquer circunstância, portanto, continua a fazer sentido. Com as Canções da Maria andamos pelo país inteiro e isso fortalece os laços entre nós.
– Além de entrar em palco como Mathias, qual é o seu papel nesta família de mulheres, Xavier?
Xavier – O meu papel é ser o mais simpático, o mais correto e, junto com a Maria, o que educa e eleva as meninas. Acho que fizemos um bom trabalho. E depois gosto da vida, sou um bon vivant, gosto de jantares com a família e amigos, de festas, de jogar padel. Vivo sem lamentar nada e o cancro não mudou isso em mim. A vida tem de ser bem vivida e sempre o fiz. Nas Canções da Maria não canto, mas divirto-me imenso a fazer aquela personagem.
Maria – O Xavier é completamente divergente. Nós somos todos “fora da caixa”, mas ele é completamente fora e estimula-nos imenso para também o sermos.
– Para além dessa cumplicidade que vos une, preocupam-se em ser pais parceiros das vossas filhas?
Mathilde – O que dizer sobre estes pais? São maravilhosos. Os meus amigos não me perguntam quando vamos jantar, mas sim “quando vamos jantar com os teus pais?”.
Manon – É verdade! Os nossos pais são convidados para as festas de aniversário dos nossos amigos e não vai mais ninguém da idade deles. Toda a gente os adora. E nós também. Gostamos mesmo que estejam nas nossas vidas desta forma.
Maria – Há pouco tempo fomos num fim de semana com as miúdas e os respetivos namorados e divertimo-nos como se tivéssemos a idade deles. As coisas têm o seu tempo e a sua idade, mas de vez em quando misturamos os mundos e corre muito bem. Nós temos espírito de bons vivants, gostamos de aproveitar a vida, que é aqui e agora.
– Mesmo estando a passar por uma fase complicada.
Maria – Sim, mesmo estando numa fase complicada desde o diagnóstico de cancro do pâncreas do Xavier. Olhando para trás, há que admitir que foi horrível o que passámos. Foi muito angustiante.
– Quando souberam que estava doente?
Xavier – No dia 28 de março de 2022.
Maria – Começou dias antes do primeiro concerto que demos em Lisboa depois da pandemia. O Xavier disse-me que tinha uma dor na zona do estômago. Parecia ser uma coisa das paredes musculares. Ele faz muito desporto, nunca está doente e não liguei. Menos de 24 horas depois, nem me disse olá, apenas que era melhor ir ao médico. Não tive nenhum pressentimento, mas fui logo ligar para um colega. Ele viu-o, fizemos o concerto no Coliseu e, na segunda-feira a seguir, fez uma série de exames. Tinha um nódulo no pâncreas. Nesse momento, confesso que contei três meses. Não queria voltar àquele 28 de março de maneira nenhuma. Os cancros são todos maus, alguns péssimos. O dele está no top três, mas a verdade é que passaram mais de dois anos e ele está aqui, é um bónus.
Xavier – Não me importo nada de voltar. Foi o dia em que soube que tinha isto e comecei a lutar pela cura. É assim que vejo as coisas. Foi um dia superimportante. O meu cancro é à grande e à francesa.
– Que forma encontraram de gerir a notícia?
Maria – Não foi nada fácil. Entrei em modo de catástrofe e comecei a tratar de tudo. Em 17 dias o Xavier estava a ser operado. Foi uma cirurgia muito complicada, durou oito horas. O Xavier sobreviveu a um cancro no pâncreas. Dito assim parece que é fácil, mas não é.
Xavier – Foi mais difícil para elas do que para mim. Puseram-me numa redoma e a Maria foi uma máquina a tratar de tudo. E os nossos amigos também ajudaram em tudo.
– Se houve coisa que não perderam foi o sentido de humor.
Maria – Perante o diagnóstico, eu e as miúdas ficámos muito angustiadas, mas ele manteve sempre o otimismo e sentido de humor. É um verdadeiro Hulk. A positividade dele sai-lhe naturalmente e contagia toda a gente. A quimioterapia é um veneno para o organismo, mas ele aguentou bem um tratamento muito agressivo. Entretanto, no final de julho, percebeu-se que havia uma recidiva na loca cirúrgica e está desde agosto em quimioterapia.
Xavier – A vida com piada é muito mais fácil e sempre olhei para tudo com sentido de humor. O meu segredo é ter pensamento positivo, esperança e nunca me queixar. Tenho uma doença grave, não desvalorizo, mas é importante “desdiabolizar” a doença e seguir em frente.
– Falaram nos amigos. A rede segura que têm também ajuda a ultrapassar estes momentos?
Maria – Os nossos amigos são maravilhosos. Só tenho de agradecer, pois estão sempre disponíveis para nós.
Xavier – Houve logo festa dois dias depois de ter tido alta do hospital. Eram os meus 51 anos e os amigos estiveram em nossa casa. Vê-los e abraçá-los foi muito importante. Pela primeira vez, na força dos abraços tive a sensação de que passei muito perto da morte.
– Mas a vida continua.
Xavier – A vida continua e estamos cá todos para contar a história. Nesta família, não há problemas, mas sim soluções.
Maria – A vida não só continua como é muito mais do que a doença. De alguma forma, parece que andamos a fintar a morte há uns tempos. Na véspera de fazer 50 anos, tivemos os quatro uma intoxicação por monóxido de carbono. Não morremos por um triz. Antes deste episódio, a dias de fazer 39, fiz uma paragem respiratória, devido a um fungo. Mais um minuto e não estava cá. Parece que temos sete vidas como os gatos. Espero mesmo que sejam sete, porque já queimámos algumas. Rezo e agradeço todos os dias esta benesse que é estarmos vivos e a sorte que temos. Já passámos muitos momentos angustiantes, mas o caminho é para a frente e estamos cá para o que der e vier.
Cabelos: Francisco Souza, de Francisco Hair Designer Lisboa
Maquilhagem: Joziane Lima
Agradecemos a colaboração de Câmara Municipal de Cascais, Fundação D. Luís I Museu Condes de Castro Guimarães e Stockroom Studio