Filha de um doente com Perturbação Obsessivo–Compulsiva (POC), Ana Vasconcelos acaba de lançar um livro onde relata apenas um pouco do que foi a terrível experiência de crescer a lidar com esta doença mental que, entre outras manifestações, se caracteriza pela necessidade de ter tudo de tal forma em ordem que se chega a repetir dezenas de vezes o mesmo gesto para que tudo esteja organizado da forma que se considera “perfeita”. Ao publicar este livro, que começou por ser apenas uma forma de se libertar desse passado difícil, espera ajudar familiares de doentes com POC e também permitir que os seus filhos, Pedro, de 15 anos, Nuno, de 13, e Francisco, de 9, nascidos do seu casamento com Pedro Boullosa Gonzalez, percebam como foi a sua história.
– O que é que a levou a escrever esta autobiografia?
Ana Vasconcelos – Quando comecei a escrever, há três anos, não era para ser um livro. O meu pai tinha estado cá em casa, pois esteve muito mal com Covid-19 e precisava de apoio, e isso foi o reavivar de muitas memórias que tinha guardado para mim, coisas nas quais não queria pensar muito, e aquilo acordou todas as situações que eu descrevo no livro, ao ponto de ter que pedir ao meu pai para sair ao fim de uma semana. Quando comecei a escrever estava só a querer arrumar ideias. E funcionou. Só que à medida que fui escrevendo e fui partilhando com alguns amigos e familiares, foram-me dizendo para continuar a escrever. E foi aí que começou a nascer um livro. Que passou por muitas fases. Inicialmente era para os meus filhos perceberem a minha história, mas houve outros fatores que me fizeram querer publicar. Um deles porque vi entrevistas de obsessivo-compulsivos e de familiares e comecei a perceber que nós tínhamos feito tudo mal, que não devíamos ter pactuado com as obsessões dele. E isso porque nunca fomos acompanhados, antigamente não havia acompanhamento familiar. É fundamental que as famílias tenham esse apoio.
– Reviver todas essas situações deve ter implicado algum sofrimento.
– Acho que por isso é que as pessoas gostam da forma como o livro está escrito. Porque é uma linguagem muito acessível e porque consegui mesmo voltar atrás no tempo e lembrar-me do que é que pensei naquela situação. E a primeira versão era um bocadinho mais zangada, mas à medida que o tempo passou e fui lendo o que tinha escrito fui conseguindo pacificar, porque me libertei.
– Durante os seus primeiros anos provavelmente o comportamento do seu pai parecia-lhe normal, até porque se calhar não tinha comparação com outros progenitores.
– Nós sempre soubemos que o nosso pai era diferente, sempre soubemos que o mundo em casa era diferente do das outras pessoas. Até porque em casa falávamos sobre isso abertamente, o meu pai nunca escondeu que era obsessivo, só que as outras pessoas não sabiam o que se passava dentro de nossa casa, porque era uma vida escondida. Fora de casa ele era completamente diferente, aparentava uma normalidade.
– Há uma comédia com Jack Nicholson, Melhor é Impossível, que lhe valeu, aliás, um Óscar, no qual ele faz o papel de um doente obsessivo-compulsivo. Mas de facto viver com um doente assim não é comédia nenhuma.
– Fui ver esse filme com a minha mãe e o meu irmão e muitas situações eram idênticas às que nós vivíamos. Estava toda a gente a rir na sala e nós não conseguimos achar graça nenhuma. A abordagem em forma de comédia não mostra o peso que a doença tem. É o mesmo caso da série da Netflix TOC, TOC.
– Porque é uma doença que destrói o próprio doente, mas também as suas famílias.
– Depende. No nosso caso, e daquilo que sei da doença, e pesquisei muito, são raros os casos em que usam os familiares como instrumentos E o nosso pai usava. Por isso sofremos muito mais.
– Porque ele fazia repetições, mas também vos obrigava a todos a fazerem repetições por ele e por isso a Ana, a sua mãe e o seu irmão eram quase escravos das compulsões dele.
– Ele fazia repetições sozinho, mas quando nós estávamos dizia que confiava mais nas nossas cabeças do que na dele e que ia ser mais rápido se o ajudássemos. E eu aprendi desde pequenina que tinha de fazer tudo direitinho, porque se não fizesse era muito pior, ia demorar muito mais tempo. Porque ele começava a ficar muito nervoso e a fazer ainda mais repetições. Se nós tivéssemos toda a paciência do mundo para fazer aquilo que ele precisava, se calhar só tínhamos que fazer 30 repetições, se começássemos a ficar nervosos, se calhar tínhamos que fazer 100 ou 200.
– Crescer num ambiente desses deve ter sido terrível. E mais tarde a Ana acabou por desenvolver uma anorexia, que é um distúrbio emocional que provavelmente foi uma consequência disso.
– Sim, talvez, e a anorexia também é uma obsessão. Diria que todo esse controlo emocional gerou em mim muita ansiedade.
– E chegou a fazer terapia?
– Tive uma altura em que fui a uma psicóloga, e com ela consegui falar bem, porque ela tinha um irmão obsessivo-compulsivo, e senti que não tinha de explicar muito. Aquela coisa de contar a vida do zero nunca consegui. Por isso é que este livro foi uma catarse.
– O seu pai culpava-vos de não fazerem as repetições da maneira que ele queria que fizessem.
– Se nós não fizéssemos ele culpava-nos da ansiedade que estava a sentir. Mas nós fazíamos, era raro o momento em que dizíamos que não. Nós víamo-lo sempre como uma vítima, ele era sensível, sofrido, portanto, nós só queríamos aliviar o sofrimento dele. Ajudá-lo era a nossa prioridade.
– A dada altura a sua mãe, que tentou tudo para que as coisas corressem bem, saiu de casa, depois regressou, até que teve a coragem de se separar de vez.
– Sim, porque foi levada ao desespero. Se não pactuasse com ele isso gerava discussões. E nós aceitámos muito mal a primeira separação, porque víamos o meu pai como uma vítima, queríamos voltar para casa.
– A verdade é que ele tentou tratar-se, fez vários tipos de intervenções terapêuticas, até eletrochoques…
– Sim, e nós sempre tivemos a esperança de que as coisas mudassem, demorámos muito tempo a perceber que ia ser sempre assim. Porque ele queria tratar-se e nós achávamos sempre que era agora que ia ser a cura. Tínhamos sempre que seguir a linha da esperança, até no diálogo com ele. Porque se o confrontássemos dizia logo que estávamos a achar que ele não ia ficar bom. Só que depois não conseguia, ou porque não tinha força de vontade ou porque isso era fruto da doença.
– Tendo em conta a hereditariedade, que nas doenças mentais existe, como mãe tem medo de algum dos seus filhos poder passar pelo mesmo que o seu pai?
– Claro que sim, tal como a minha mãe também tinha connosco. Felizmente, eu e o meu irmão conseguimos sobreviver sem sermos afetados. Acho que aquilo para nós era tão intenso que fomos criando uma aversão que nos protegeu disso.
– Que conselhos é que daria a uma família que viva nas mesmas circunstâncias? Porque no fundo, o seu livro também tem esse objetivo.
– Que procurem o acompanhamento de especialistas, isso é fundamental. As mulheres, os maridos, os filhos têm de ser acompanhados, para aprenderem a não alimentar as obsessões do doente. Com isso também estarão a ajudar o doente, vai-se focar no seu tratamento de forma independente, vai ter ferramentas para lidar com a doença.
– Tem pena que a sua família não tenha podido ter esse acompanhamento?
– Claro que sim, não sei como é que seriam as coisas hoje, mas seriam certamente diferentes, se calhar o meu pai não estaria melhor, mas em termos familiares seria melhor.
– Portanto, hoje em dia acredita que não são casos perdidos?
– Hoje sei que há muitos casos de sucesso, é uma coisa que se consegue tratar.
– O seu pai ter vindo para sua casa convalescer da Covid desorganizou-a mesmo.
– Sim, porque tenho a minha família, tenho a minha vida, já não me vejo a comportar-me da maneira que o meu pai espera. De repente, senti-me de novo presa naquela teia e tive que dizer não.
– A Ana expôs esse passado também para os seus filhos o ficarem a conhecer…
– Sim, eu não falava abertamente sobre isto, mas eles também eram pequeninos. O meu filho do meio ainda não percebe muito bem, mas o mais velho já começa a entender. Quando comecei a escrever o livro, há três anos, ele queria ler e eu dizia-lhe que não, porque era demasiado cedo, mas agora ele já tem cabeça para ler. E uma coisa engraçada é que com o meu livro o meu irmão também acabou por conversar com os filhos sobre isto. Portanto, também o ajudou.