Nasceu há 35 anos em Coimbra, chegou a morar no Porto, mas o divórcio dos pais, quando tinha 8 anos, obrigou-o a mudar-se para uma pequena aldeia na Covilhã, onde viveu até aos 15, quando rumou a Lisboa para estudar na Escola Profissional de Teatro de Cascais. Assim que terminou o curso, Rafael Morais comprou um bilhete para Los Angeles para ir atrás do grande sonho. Foi com uma bolsa da GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas que estudou na escola de representação Stella Adler Academy, em Los Angeles, onde viveu de forma intermitente durante 12 anos e onde realizou o seu primeiro filme, a curta You Are the Blood, que foi selecionada para o NewFilmMakers e para o festival IndieLisboa.
No início da pandemia regressou a Portugal e, desde então, tem participado em inúmeros projetos europeus de televisão e cinema. É o caso do filme Um Café e Um Par de Sapatos Novos, de Gentian Koçi, onde, com o seu irmão gémeo, o realizador e ator Edgar Morais, teve de aprender linguagem gestual para interpretar uma história de dois irmãos surdos com uma doença degenerativa, numa coprodução entre a Albânia, Portugal, Grécia e Kosovo que chegará às salas nacionais a 31 de outubro.
Nomeado para os prémios Sophia como melhor ator no filme Amadeo, de Vicente Alves do Ó, onde dá vida ao pintor modernista Amadeo de Souza-Cardoso, Rafael Morais entrou ainda nas películas Pátria, de Bruno Gascon, Mal Viver e Viver Mal, de João Canijo, Malcriado, também de Vicente Alves do Ó, e terminou recentemente a rodagem da nova longa-metragem de Pedro Cabeleira, Entroncamento. Protagoniza ainda, ao lado de Margarida Vila-Nova, a série Irreversível, selecionada como uma das dez melhores séries pelo MipDrama 2024, em Cannes, cuja estreia está marcada para dia 14 de outubro na RTP.
Em entrevista à CARAS, o ator assume que o cinema acabou por ser um escape durante a difícil transição da sua infância, marcada pelo divórcio dos pais e consequente mudança do Porto para uma pequena aldeia. A paixão pelo cinema surgiu então como um refúgio e uma forma de lidar com a falta de integração num novo ambiente.
– Se não fosse ator, o que é que gostaria de ter sido? As artes parecem estar muito presentes na sua vida desde sempre.
Rafael Morais – Certamente algo relacionado com artes, sim. Seria muito difícil imaginar-me a fazer outra coisa. Para ser honesto, ainda tentei vários outros caminhos, mas percebi que, por muito difícil que seja esta vida, não seria feliz a fazer outra coisa. Prefiro viver com esta profissão, com os percalços e inseguranças inerentes, do que ter outra profissão.
– Que tentativas foram essas?
– Dediquei-me à fotografia, trabalhei num restaurante em Los Angeles, aliás tive vários trabalhos em LA enquanto lá estive. Tive uma bolsa para estudar na Stella Adler, mas depois decidi ficar e tratar do visto, e acabei por ter de trabalhar noutras áreas por uma questão até de sobrevivência. Estive quase para ir para a Uber. Durante quase um ano trabalhei em restaurantes, tive vários trabalhos de fotografia, que é uma coisa que ainda amo, porque, de facto, ser ator é uma profissão muito instável, especialmente em Portugal. Há falta de investimento por parte dos governantes e um sindicato que nos proteja. Acho que já provámos, enquanto profissionais desta indústria, o que temos a provar e, mesmo assim, penso que não há respeito por parte dos governantes.
– O que é que falta para existir um sindicato, como acontece, por exemplo, nos EUA, que defenda os interesses dos atores?
– Falta organização e união acima de tudo. Assistimos, no ano passado, a uma greve de atores e argumentistas que se arrastou durante bastante tempo e que acho que isso seria uma coisa muito difícil de acontecer em Portugal, porque, de certa forma, somos todos forçados a pensar individualmente e não em coletivo. Os Estados Unidos também não são o exemplo perfeito, porque funcionam de uma forma totalmente diferente, é outro universo. Mas, comparando com Espanha, França ou outros países europeus, creio que estamos aquém do nível de respeito e proteção.
– Houve alguém ou algum momento específico no seu crescimento que o tenha inspirado nesta decisão de querer ter uma carreira ligada à representação?
– Penso que o devo à minha mãe, que fazia conservação e restauro. Cresci a vê-la trabalhar neste universo da arte. A minha base é o teatro, mas a paixão surgiu com o cinema e estará relacionada com o divórcio dos meus pais e o facto de me ter mudado do Porto para uma aldeia, onde vivia a minha avó, na qual não me integrei totalmente. Foi um processo muito difícil, nunca criei raízes lá, e nessa altura tornei-me obcecado pelo cinema.
– Que idade que tinha nessa altura?
– Oito anos.
– Os filmes eram uma forma de se abstrair e de viajar?
– Sem sombra de dúvida.
– Diz que todos somos artistas, pelo menos enquanto crianças. O que é que retira o artista que há em nós?
– A maior parte de nós é obrigada a largar esse lado ‘infantil’, de criador, de olhar o mundo com curiosidade, por razões de sobrevivência. Somos moldados para pertencermos a uma sociedade e fazermos determinado trabalho, e vamos perdendo essa magia e curiosidade, vão-nos tirando as pernas. Se calhar não há muito interesse, a nível político ou da maneira como a sociedade está construída, em que os cidadãos comuns sejam curiosos, cultos, inteligentes, artistas. Acho que é muito por aí, a maneira como está construída a sociedade atual, capitalista, que, de certa forma, não tem interesse em alimentar isso.
– O Rafael é um eterno curioso?
– Sim, penso que é uma coisa inerente, essencial, na verdade, a qualquer artista. É ter uma mente muito aberta e uma curiosidade extrema.
– O Bruno Gascon, a propósito do filme Pátria, no qual o Rafael participa, diz que tenta sempre ter ótimos atores nos seus projetos, mas, acima de tudo, pessoas com sensibilidade. Considera-se, como ele diz, uma pessoa sensível?
– Certamente, e não tento de todo esconder. Acho que ser sensível é uma qualidade incrível de personalidade. Procuro, nos trabalhos que faço, ser vulnerável. Acho que não há nada mais bonito, num filme ou num espetáculo, do que ver um ator ser vulnerável. Mostrar a emoção é uma coisa linda de morrer. Não é recriável, é algo que acontece ou não acontece. É mágico.
– Falando ainda de Pátria, onde se abordam temas como xenofobia e restrição à liberdade de expressão, numa altura em que crescem na Europa regimes extremistas com discurso de ódio, considera fulcral falar destes temas? Foi importante para si aceitar protagonizar o filme também por isso? Ou teve, em contrapartida, algum receio de dar vida a uma personagem controversa como esta?
– Ambos. Tive receio, primeiro que tudo, que a personagem ficasse muito unidimensional e sem profundidade. E é uma coisa complicada fazer uma personagem tão complexa e com tanto ódio. Mas a minha prioridade foi, desde o início, torná-la humana. Porque estes atos injustificáveis que certas pessoas cometem, inclusive Hitler, vêm de um sítio humano, de falta de educação e de trauma. E foi esse perigo, de certa forma, que me entusiasmou no projeto. Tento jogar muito com o risco no que toca a trabalhos, é uma componente importante que me faz decidir aceitar ou não um projeto, sentir que pode falhar. Para mim, não há nada pior do que fazer uma coisa banal ou medíocre. Prefiro arriscar e falhar do que fazer uma coisa desinteressante. Dito isto, creio que é importante falar sobre isso, mas não acho que haja obrigação por parte do artista, do criador, do realizador, do argumentista ou do ator de contemplar quaisquer ideais políticos contemporâneos que estejamos a viver. Acho que o artista deve ter liberdade. A arte com “A” grande não tem de tentar agradar a convenções políticas ou sociais. Um filme não tem de ter necessariamente uma moral ou mensagem específica. E, se tiver, que esteja naturalmente implementada no projeto. Tentar manipular ideais não deve ser uma coisa consciente. Não me identifico muito com esse tipo de arte, de cultura, de cinema.
– A arte é sinónimo de liberdade?
– Sem qualquer dúvida.