Estreou-se como fadista aos 9 anos, mas foi como atriz – conquistando o título de “rainha da revista à portuguesa” – que Marina Mota se tornou uma das artistas mais reconhecidas e acarinhadas do país. O fado manteve-se sempre presente na sua vida, e a 28 de setembro é uma das atrações da nova edição do festival Caixa Alfama, em Lisboa, para o qual está, pela primeira vez, a ter aulas de voz. A par dos palcos, é no campo e no meio da Natureza que se sente mais plena. E foi lá que recebeu a CARAS para uma conversa – como não poderia deixar de ser – frontal.
– Disse que nesta fase da vida gostaria de abrandar o ritmo. Tem conseguido?
Marina Mota – Não tanto quanto gostaria. Acabei de gravar a novela Senhora do Mar e ainda não consegui ter férias. Houve um convite para voltar a cantar que está a tirar-me do eixo e a deixar-me um bocadinho ansiosa. Além disso, tenho uma casa em Tomar que não faz sentido continuar a ter e tenho andado em mudanças. Ainda não consegui repousar e ter tempo para mim. Mas profissionalmente tenho tido tempo, porque as coisas que me apareceram para fazer nos entretantos não me despertaram grande interesse a nível artístico e então decidi ficar quieta.
– Avizinha-se um regresso às cantigas?
– Aceitei o convite para voltar a cantar no Caixa Alfama. É uma vertente que gostaria de continuar a explorar. Acho que Deus me deu esse dom, que por uns tempos coloquei de lado, e agora estou a pagar a “fatura”, por sentir que ele não está a 100%. Bem como gostaria de, eventualmente, voltar a fazer uma produção teatral para estar em digressão.
– Começou a sua carreira aos 9 anos como fadista e tem carteira profissional. Este acaba por ser um regresso às origens?
– O convite deve-se ao José Gonçalez, que tem sempre a gentileza de me convidar, como acontece para o [programa da RTP1] Em Casa d’Amália. Tal como às vezes surgem contactos para fazer um espetáculo de fado e digo sempre que não tenho nada preparado. Durante muitos anos, e enquanto produzi os meus programas, perguntavam-me se gostava mais de cantar ou representar. Respondia sempre: “As duas coisas”, porque uma não invalida a outra, principalmente no género que gosto de fazer, que é, como sabem, a revista à portuguesa. Aí era possível ter momentos de fado. Mas nos últimos anos tem havido mais convites para novelas e, simultaneamente, andei “na estrada” com peças, em que a “fadistice” – com muito carinho e honra – ficou um bocado de lado. Neste novo convite decidi testar se ainda tenho, ou não, essa capacidade.
– Sente-se agora menos capaz de cantar fado?
– Não é isso. As cordas vocais são músculos e requerem treino para ficarem como eu acho que elas devem estar para oferecer às pessoas o que elas estão à espera que eu dê.
– Tem medo de falhar?
– Sim, tenho, mas não do falhanço. Já cantei sem voz, representei doente, a levar injeções de cortisona, afónica durante duas horas e meia no palco, enfim… Mas atuei porque as pessoas tinham pago bilhete e eu não tinha mais para dar naquele dia. Isso é uma eventualidade que eu não domino, outra coisa é partir para algo sabendo de antemão que não estou com as capacidades que deveria estar para servir as pessoas da melhor forma. Saber que não estou segura e ir na mesma considero um desrespeito pelo público. Se sentir que não tenho o melhor para dar, prefiro não dar e assumir isso.
– Continua a ser fadista?
– Isso nunca saiu de mim. Sou do tempo em que o fado não era moda nem Património Cultural Imaterial da Humanidade. Era uma cançãozinha a que as pessoas não ligavam nenhuma. Finalmente chegou ao lugar onde deve estar. Mas sou fadista mesmo calada, a ouvir colegas cantar ou tocar. Sinto que há pessoas que gostam de me ouvir, mas – em qualquer altura e em detrimento da representação – foi uma parcela da minha vida que foi ficando de lado. Não é que queira voltar ativamente a cantar, mas é frustrante não poder continuar com algo que me dá tanto prazer, nem que seja cantar no chuveiro ou para os amigos. Cantar faz-me bem, é um estado de alma.
– Estados d’Alma é exatamente o nome do seu último disco (2005). Não voltaria a gravar um álbum?
– Completamente fora de questão! Os discos fazem sentido quando passam nas rádios para que o público tenha conhecimento deles. Quando é esquecido e ninguém liga nenhuma, não faz sentido gravar só porque sim.
– A carreira de atriz ganhou maior notoriedade. Foi uma escolha?
– Aconteceu… Nada na minha vida foi uma escolha. O tempo em que a base mais importante era cantar foi perdendo lugar. Mas serei fadista até ao fim, mesmo não cantando. São duas áreas completamente diferentes, mas qualquer delas trato com o mesmo respeito. Desde o início que digo que o público é a entidade que merece todo o meu respeito, vénias e eterna gratidão. Será sempre pouco o que diga para agradecer às pessoas que me seguem e têm a gentileza de ter um grande carinho por mim. Portanto, o mínimo que posso fazer é não as defraudar, ou tentar que isso não aconteça. Seja o que for, só não farei melhor se não o conseguir. Mas que isso me tira noites de sono tira.
– Por isso foi ter aulas de voz para este próximo espetáculo?
– Aulas de reeducação vocal com o professor Diogo Pinto. Fiz uma aula de voz há muitos anos para perceber o que era, mas esta é a primeira vez na vida que estou verdadeiramente a ter aulas. Ao aceitar este compromisso quis saber se não teria qualquer problema e se a voz estaria pronta.
– Começou a cantar aos 9 e tem agora 52 anos de carreira. Faz sentido investir na formação?
– Todo! A técnica é sempre importante para perceber. Mas tanto o fado como a representação exigem que a técnica se misture de forma natural com a emoção e a intuição. São duas artes que têm de ser muito viscerais. É difícil transmitir uma emoção se não estivermos a sentir o que estamos a dizer ou a cantar. Eu trabalho mais com a emoção e a intuição do que com a técnica.
– O fado está bem entregue à nova geração?
– Acho que está e que há gente a cantar maravilhosamente bem. Depois é como olhar para um quadro: há pintores que são superfamosos e que possivelmente a pintura deles não me diz nada. A arte é isso mesmo. Uma coisa é não gostarmos, outra é dizermos que é mau. Há coisas maravilhosas de que não gosto. E vice-versa.
– Se não tivesse seguido este percurso, o que teria sido?
– Queria ser hospedeira (agora diz-se assistente de bordo) e gostaria de ter tirado um curso de Línguas. Sempre gostei de conversar. Cantar era um hobby para mim e representar nunca esteve no meu horizonte.
– Não foi assistente de bordo mas já viajou por muitos países. Quais os que mais a marcaram?
– Não gosto de grandes cidades. Amo Lisboa, mas viver lá deixar-me-ia alucinada, pois não gosto de confusões e cimento. Gosto mesmo da Natureza, água, verde, árvores e flores. Gostei das Maldivas, Quénia, Malásia… Se gosto muito de Nova Iorque? Não.
– É uma mulher do campo?
– Campo ou praia, sempre. Se há coisa que me dá prazer é acordar e ficar 10 ou 15 minutos no meu silêncio. Traz-me serenidade. Adoro sentir a brisa, é como um abraço fresco.
– Que netos são a Alexia e o Gabriel?
– São miúdos bem formados e estudantes incríveis. Estão na faculdade e adoram estudar [ela, de 20 anos, em Direito, e ele, de 18, em Tecnologias Digitais e Segurança de Informação]. Dizem que os pais educam e os avós “deseducam”. Eu sou o contrário, gosto de educar. E continuo a achar bonito o respeito hierárquico numa família. Tenho o maior respeito pela minha mãe [Matilde], que tem 86 anos. Levanto-me para lhe dar a minha cadeira, gosto de cuidar. Gostaria que os meus netos mantivessem esse mesmo cuidado com os outros.
– O mesmo rigor com que olha para a sua profissão traz também para a esfera pessoal?
– Sem método é difícil cumprir. É uma questão de personalidade. Mas sim, sou muito organizada. As pessoas não têm de estar sempre de acordo, mas é fundamental a lealdade, frontalidade e verdade, acima de tudo.
– O que é que a sua filha herdou da mãe e do pai?
– Penso que o que a Érika tem de bom é o coração… Acho que puxou a mim e ao Carlos [Cunha]. Com os filhos ela é mais permissiva do que eu.
– Ser mãe foi o papel mais importante da sua vida?
– Foi e é. Não se explica o que se sente. E tenho muito orgulho na Érika.
– Ela também é atriz. De alguma forma prejudica-a ser filha de quem é?
– Benefícios não teve nenhuns. Nunca vi a minha filha ser convidada para fazer coisa nenhuma na “caixinha mágica”. Mas quero acreditar que também não teve malefícios.
– Qual é a importância do amor na sua vida?
– É vital. O que se está a notar na nossa sociedade é a falta dele. Já em 1985, numa revista à portuguesa, gravei um tema que se chama É Urgente o Amor. Passados quase 40 anos, ainda mais. Seja em notícias ou no pouco que vejo nas redes sociais, sinto que as pessoas estão cheias de raiva, ódio. Sou uma pessoa da paz, do civismo, da boa educação, do carinho e do amor. Sinto as pessoas mais desligadas, cada vez mais prontas para um estalo em vez de um abraço. Até mesmo os telemóveis roubaram um pouco a capacidade dos miúdos de socializar. Provavelmente os nossos pais disseram a mesma coisa no século passado, mas acho que não é bonito o panorama. Mas na minha família sei que sou amada por todos.
– Tem muitos amigos neste meio?
– Tenho muitos conhecidos e pessoas que me querem bem. Amigo é aquele que está disponível para nós a qualquer hora, caso precisemos do que for, que convidamos para a nossa casa e com quem podemos partilhar coisas nossas. Mas não tenho inimigos.
– Sente-se desiludida com alguma coisa?
– Não sou amarga com nada. Posso ter criado uma perspetiva diferente em relação a este ou aquele assunto e que não aconteceu. Mas ao perder a ingenuidade vamo-nos surpreendendo menos.
– Especialmente a nível profissional?
– Há pessoas que estão acima de nós que conversam connosco sobre possíveis projetos e que depois não chegam a lado nenhum. E às vezes isso nem acontece por mal… é habitual haver coisas que ficam pelo caminho. E, convenhamos, na minha profissão – e há medida que os anos avançam – é mais difícil existirem trabalhos que artisticamente sejam uma boa surpresa. Já ouvi até outros colegas partilharem (e é verdade!) que as histórias são escritas para pessoas até uma faixa etária ali perto dos 40 anos. Mulheres e homens.
– Diz que irá “morrer mantendo a coluna vertebral” e que não vai vergar-se aos donos das estações, diretores de programas ou às redes sociais. Isso trouxe-lhe dissabores?
– Eu não me vendo. A ninguém! Deus me conserve essa virtude. Prefiro ser um bom ser humano e ter orgulho das minhas atitudes. A parte artística vem depois. Lido muito mal com a hipocrisia, não dizer algo para parecer politicamente correta, principalmente se for um diretor de um canal. Sou apologista da frontalidade com boa educação. Sou como o algodão: não engano. Nunca encarei homem nenhum, pessoa nenhuma, que tivesse medo de enfrentar. Abomino os joguinhos de bastidores. Se nunca usei nada disso quando tinha 30 ou 40 anos e era “bonitinha”, não é com 62 que vou mudar. É da discussão e do esclarecimento que nasce a luz.
– Lida bem com a passagem do tempo e o avançar da idade?
– Lido. E mesmo nos dias em que não lido obrigo-me a lidar. Não estou nada triste por envelhecer e fazer anos. A alternativa seria bem pior e era sinal de que já cá não estava [risos]. É a vida! É preferível envelhecer com consciência do que fazer disso um drama e querer ter 20 ou 30 anos, que não tenho. Estou bem. Agora, se preferia ter 45? Óbvio, mas nós somos muito mais do que a idade.
– Voltar a apaixonar-se de forma correspondida é um desejo?
– Não é algo que dependa de mim ou que procure com uma lanterna. Acontece… Gostaria que me acontecesse, sim, mas obviamente que começo a perder a esperança [risos].
– Está nomeada para o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Teatro. Que importância têm os prémios para si?
– Acho que as pessoas gostam de mim, mas tenho a consciência de que não sou diferente de todos os meus outros colegas. Numa altura estamos a subir a rampa e noutra estamos a descer. Só espero que a minha descida seja suave, não seja aos trambolhões. A determinada altura talvez tivesse sido importante esse “estímulo”. Depois de já ter feito tanta coisa o entusiasmo não é o mesmo. O único prémio para que vivo e trabalho é o público, que me acarinha e tem a generosidade de encher as salas por onde passo para ver-me representar, cantar, rir e chorar comigo. Esse é o meu prémio.
– O que lhe falta?
– Nada. Falta o simples facto de amanhã acordar e continuar a respirar. E até o ar não é nosso, inspiramos e logo no momento seguinte temos de o deitar fora. Sou grata pelas pequenas coisas: comer, beber, ter a minha mãe ainda comigo, dar um mergulho. Tenho tudo para me sentir feliz.