
Bailarino principal do Royal Ballet, Marcelino Sambé continua, aos 30 anos, no topo da hierarquia da mais importante companhia de bailado do Reino Unido e uma das mais prestigiadas do mundo, na qual ingressou em 2012.
O caminho foi sempre a subir e o futuro começa a delinear-se na cabeça do bailarino, que, pela primeira vez, decidiu parar um mês só para descansar e pôr o corpo, mas sobretudo a mente, no lugar.
Filho de pai guineense e mãe portuguesa, criado mais tarde por uma família adotiva, Marcelino cresceu no Bairro do Alto da Loba, em Paço de Arcos, e cedo deu nas vistas pela agilidade com que se movia ao ritmo da música. Aos 5 anos já andava no grupo Estrelitas Africanas, aos 10 foi admitido na Escola de Dança do Conservatório Nacional, sem nunca ter tido uma aula de ballet, e seis anos depois mudou-se para Londres com uma bolsa para integrar a Royal Academy of Dance, uma porta de entrada para o Royal Ballet, onde tem construído uma carreira que o leva a ser considerado um dos melhores do mundo. O sonho concretizou-se, mas trabalha todos os dias para que se continue a realizar.
Em Lisboa, cidade que será sempre a sua, conversou com a CARAS sobre passado, presente e futuro, sem rodeios e com os pés descalços bem assentes na terra.
– O que o traz a Portugal?
Marcelino Sambé – Depois de uma temporada passada muito complicada, em que fiz 11 programas diferentes como bailarino principal, precisava de parar. Foi, de facto, um ano muito intenso, e já tenho uma agenda cheia para o próximo, que inclui temporadas na China, EUA e Japão, e pensei que, algures no ano em que completei 30 anos, tinha de estar com os meus sem ser de fugida. Precisava de não fazer nada. Se há coisa que falta na minha vida é poder pensar em mim, no Marcelino pessoa, e não apenas no bailarino. Então cancelei tudo para me concentrar em mim durante cinco semanas. Viajei, namorei, comi muito bem, nadei em todos os mares. Termino no meu lugar preferido do mundo, que é Portugal.
– Desta vez o corpo exigia uma paragem maior? Um bailarino clássico tem uma exigência física enorme.
– Convivo com essa exigência desde criança e tenho tido imensas lesões, algumas já se tornaram crónicas. O meu corpo precisava desta paragem e a minha mente também. Está na altura de pensar no que quero fazer no futuro. Seria maravilhoso poder dançar durante toda a vida, mas um bailarino clássico não o consegue. Preciso pensar no próximo caminho, que direção quero tomar. Tenho ainda coelhos para tirar da cartola, mas preciso de pensar no que vou fazer a seguir. Esta é uma carreira efémera, pelo menos em palco.
– É considerado um dos melhores bailarinos do mundo. O que o mantém “ligado à terra”?
– Primeiro que tudo, a minha família, que jamais me deixaria deslumbrar e que é quem mais amo. Mas também não me vejo como uma celebridade. Quem me conhece sabe que tenho as minhas inseguranças. A minha arte é subjetiva. Estou sempre sujeito a críticas do público, dos coreógrafos, dos críticos. Nunca é uma conta certa e isso faz-me estar sempre bem ciente da minha realidade. Sem muito trabalho não sou nada. Sou português e nós não somos deslumbrados como pessoas. Temos uma base muito humilde onde quer que estejamos.
– Cada vez que sobe ao palco continua a pôr-se à prova?
– Estou sempre a pôr-me à prova e há sempre alguém novo que traz outra perspetiva que me inspira. A arte só pode ser recebida por quem a sabe receber, é um trabalho contínuo. Espero até aos 70 anos dançar de formas diferentes. No Royal Ballet só o farei até aos 40, não é possível mais, mas noutros géneros de dança posso, pois há tantas formas diferentes de me expressar. Gosto muito do tanztheatre (teatro-dança) que a Pina Bausch tornou famoso e que só se consegue com a idade e a experiência, que não se produz, vem de dentro. Também gosto de coreografia e direção. Tenho mais dez anos de crescimento e conhecimento e depois outras coisas irão acontecer. E só consegui ver o futuro desta forma tendo parado um mês. Quando estamos a trabalhar, só pensamos em ser melhores, estamos virados para dentro. É um meio egoísta, de alguma forma.

– E também muito competitivo, não?
– Tento fugir a esse lado da competição, mas, na verdade, é uma arte competitiva e que se recicla rapidamente. Hoje em dia, por exemplo, trabalhamos muito com ciência do desporto, com personal trainers. Já não se quer o “fio de esparguete” magríssimo em palco.
– Nunca foi esse bailarino extremamente magro.
– Não, e por isso a magreza foi uma luta que tive comigo desde que cheguei a Inglaterra. Éramos 30 rapazes de todo o mundo e todos com físicos muito magros e invejáveis. Eu era muito diferente deles, mais atlético e musculado. Mal sabia que a minha diferença era a minha força naquele momento. Quando recebi o contrato para entrar na companhia, nem queria acreditar. Foi a maior surpresa que tive na vida. A direção queria algo novo e ser como sou em termos de porte foi o que me ajudou a chegar onde estou hoje. A dança estava sedenta de diferença e diversidade. A sociedade é diversidade, não podemos chegar à dança e vermos sempre os mesmos loiros de olhos azuis.
– Houve muito sacrifício da sua parte neste caminho?
– Sem dúvida. Quando era miúdo não pensava nisso, quando me diziam que só dançava e ia para a escola. Fazia com tanto amor que nunca senti como um sacrifício. Só agora, quando olho para trás, é que percebo que sacrifiquei imensas experiências. A vida de um bailarino não é nada como a de um outro adolescente, é muito isolada. Precisei de chegar aos 30 para perceber que podia parar um bocadinho e só viver.
– A dada altura sofreu uma fratura na tíbia. Nesse momento sentiu que a sua carreira podia estar em perigo?
– Claro que sim. Aconteceu quando tinha sido promovido a solista. Tinha 23 anos, era o mais novo naquele escalão e dancei o ano todo. Sentia-me exausto, mal conseguia andar, quanto mais saltar. Não era só dor, o meu corpo dizia-me que tinha de parar. Na verdade, estava com uma fratura na tíbia e andava assim há um ano. Nessa altura tive de parar de dançar e fazer todo o trabalho de recuperação. Ainda hoje trabalho sobre esse impacto. Tenho as minha cruzes e mazelas, como todos os bailarinos. Não há bailarinos sem lesões e essas dão-nos uma escuridão que nos permite trabalhar com outra dimensão. No meu caso, a minha infância também tem um potencial enorme e sempre que interpreto um papel denso vou lá atrás, penso nas pessoas que deixei para conseguir ir para a frente. Hoje em dia interpretar um papel a dançar é a parte de que mais gosto.
– Ter crescido num bairro social, num contexto económico e social difícil, definiu-o?
– Completamente. Num destes dias, estava a mostrar ao meu namorado de onde vim, através de pesquisa no Google, e, de repente, aparece uma imagem de um grupo de pessoas no Alto da Loba e está lá um miúdo vestido de vermelho, devia ser a minha roupa de festa, e pensei que, naquela altura, não tinha noção nem sonhava com o que de bom me iria acontecer. O Marcelino Sambé que está aqui só existe por causa do miúdo que cresceu no bairro, que ia ao centro comunitário e teve a ajuda da psicóloga e das pessoas que lá trabalhavam, que começou ali a fazer danças africanas. Se não tivesse vivido dessa forma, não teria as camadas que tenho como artista e como pessoa, a abertura de poder estar em qualquer ambiente e não me sentir um refugiado.

– Como era nessa altura?
– Sempre me achei muito pouco especial em criança. Era um miúdo reguila, matreiro, pouco concentrado na escola, mas no momento em que começava a dançar tudo mudava. Depois, quando descobri o ballet no Conservatório, senti-me assoberbado. Lembro-me de chegar à audiência com um fato de treino vestido e a fazer danças africanas ao ritmo da música clássica, sem qualquer técnica, sem saber nada, e o júri achou graça. Podia ter sido rejeitado e nada teria acontecido desta forma. Aquela decisão mudou-me a vida.
– É primeiro bailarino de uma das melhores companhias do mundo e não disfarça que também passa um bom momento pessoal. Sente-se completo?
– O namoro é recente, de alguns meses. Tive uma relação antes durante sete anos. Este ano tem sido de muitas mudanças também a nível pessoal e esta minha nova relação tem sido incrível. Ele está no mundo da moda, que adoro, e tem sido muito interessante viver entre dois mundos paralelos. Estou entusiasmado e muito feliz.
– No futuro continua a ver-se a morar em Londres?
– Sou uma pessoa muito espiritual e este verão, quando estive em Ibiza, fui a uma pessoa que lia as mãos, um senhor muito velhinho que tem uma cabana no mercado, e ele, mal abriu a minha mão, disse: “Tu danças e a tua vida é trabalho, nunca vais conseguir nada sem trabalho, e vejo dois países, duas casas.” Percebi que tenho de voltar para Portugal. Gosto muito deste país e encaro-o como base, apesar de viver em Londres. A partir de Lisboa, numa hora estamos em lugares incríveis, com tanta paz… Mesmo que não viva cá em permanência, espero conseguir ter um lugar aqui. Quero ter o meu pedacinho de terra. É o meu sonho agora. Isso e a ilusão de tornar a minha imagem em palco arrebatadora. Ainda não consegui chegar a esse patamar.
Agradecemos a colaboração de Fundação Calouste Gulbenkian