Bruno Gascon consolidou a sua carreira em Portugal e ganhou projeção internacional ao dirigir filmes como Carga, Sombra e Pátria, que abordam temas sociais com uma sensibilidade única. A propósito da estreia da série Irreversível, onde nos leva a refletir sobre saúde mental, adoções ilegais, bullying, homofobia e maternidade, que a RTP1 está a transmitir semanalmente às segundas-feiras, o realizador e argumentista marcou encontro com a CARAS. Na companhia da filha, Júlia, que nasceu a 12 de abril de 2023, fruto da sua relação de mais de uma década com a produtora Joana Domingues, que batizou com o mesmo nome da protagonista de Irreversível – “as duas Júlias nasceram ao mesmo tempo, porque quando estava a construir o guião, foi quando descobri que ia ser pai” – Bruno Gascon falou sobre a transformação que a paternidade lhe trouxe, os desafios de ser pai e cineasta e o seu compromisso em usar o seu trabalho como voz para temas difíceis e sensíveis.
– A Júlia é a sua primeira filha?
Bruno Gascon – É a primeira e há de ser a única.
– Porquê?
– Porque tenho uma vida muito itinerante, estamos sempre em rodagens, e torna-se complexo ter mais do que um filho. Além disso, também sou filho único e acho importante ter tempo para as crianças e dar-lhes a devida atenção. Assim, esta fica com toda a minha atenção.
– Foi por isso que demoraram tantos anos para darem este passo enquanto casal? Ou a Júlia não foi muito planeada?
– No fundo, não foi muito planeada. Nunca tive muito essa ideia de querer ser pai, mas desde que ela nasceu mudei completamente, adoro ser pai. Foi uma transição gigantesca na minha vida, mas estou muito feliz, porque tem sido uma alegria ser pai da Júlia. Agora o meu trabalho é ser pai. Ser realizador, fazer filmes e séries acabou por se tornar um hobby e não o contrário.
– Mudou também a sua perspetiva em relação ao trabalho e, eventualmente, à abordagem em relação a projetos futuros?
– Em parte, sim. Estou habituado a falar sobre problemas complexos da nossa sociedade. Estudo e leio muito sobre os temas de que vou falar e isso deixa-me naturalmente mais apreensivo tendo uma filha. Quero continuar a falar sobre estes temas estruturantes da sociedade e vejo com algum receio o futuro dela, até porque quero que ela cresça com liberdade, com voz, por isso não alterou muito nesse lado do trabalho. Obviamente que alterou a minha perspetiva no sentido de ter mais receio do que possa acontecer por causa dela.
– Mas devemos ter esse nível de preocupação em todos os passos que damos na vida ou, para nos protegermos mentalmente, também podemos aliviar um pouco essa pressão?
– É importante as pessoas desligarem um bocadinho e serem felizes, obviamente que sim, mas também ter alguns cuidados que normalmente as pessoas têm tendência para se esquecer um bocadinho.
– E a Júlia não veio trazer alguma leveza também?
– Ela veio trazer-me toda a leveza e veio tirar-me todo esse peso de cima de mim. Obviamente que sou muito mais feliz desde que ela nasceu. É uma felicidade todos os dias poder estar com ela. Acima de tudo, quero que, quando ela cresça, consiga perceber a mensagem que o pai quis tentar passar nos seus projetos. Só o facto de pensar que ela um dia os poderá ver e ter orgulho neles já me deixa feliz.
– Usa sempre um chapéu. É uma imagem de marca? Uma proteção?
– É uma imagem de marca, obviamente que sim. Também uma proteção, uma forma de criar uma capa. A minha grande referência, o meu “mentor”, a pessoa que me ensinou grande parte das coisas que sei – o realizador Karim Traïdia – também usava chapéu. E eu acabei por me sentir muito protegido ao colocar também um chapéu. Sou uma pessoa altamente perfeccionista e insegura ao mesmo tempo, e acho que o chapéu me transmite a imagem de força de que às vezes necessito para ir em frente nas decisões.
– As personagens das séries e dos filmes que realiza são levadas a emoções extremas, uma missão que parece impossível, mas que o Bruno consegue fazer passar através dos ecrãs. Como trabalha com os atores para alcançar atuações tão intensas e autênticas?
– É complexo, mas ao mesmo tempo simples. Começa na escolha do casting, ou seja, tento escolher pessoas que tenham a sensibilidade necessária para os temas de que vamos falar. Falamos sobre a personagem, sobre o seu background, e depois têm que ser pessoas com experiência de vida, com alguma bagagem, que lhes permita entender o que é que estamos a tentar transmitir. E também conseguem, depois, transmitir essa mensagem mais facilmente. Portanto, é um trabalho conjunto, vou conversando com eles e vamos construindo as personagens, vamos percebendo quais são as suas motivações, porque é se sentem daquela forma naquela cena específica. Isso faz com que as personagens sejam o mais realistas possível, porque todos nós, seres humanos, temos muitas zonas cinzentas. Ninguém é bom ou mau. Andamos sempre neste limbo, nesta zona cinzenta. E as personagens também têm esse lado cinzento. Quanto mais zonas cinzentas e camadas humanas conseguirmos colocar nas personagens, através da parte física e, sobretudo, da parte psicológica, melhor. Muitas vezes um silêncio pode dizer muito mais do que palavras, porque na vida real não estamos sempre a falar, muitas vezes no dia a dia estamos embrulhados nos nossos pensamentos, e é importante que as pessoas entendam, quando estão a ver uma cena em silêncio, o que é que está por detrás de todo aquele silêncio. Eu e os atores tentamos jogar com esse lado psicológico das personagens, que é muito importante, porque o nosso lado psicológico controla muito o nosso lado físico. Se estivermos tristes, não vamos caminhar da mesma forma. Estando contentes, estamos mais eufóricos, caminhamos mais depressa. Portanto, é muito importante que as personagens que crio tenham esse lado psicológico e humano.
– E o amor justifica tudo, como questiona na série Irreversível?
– No caso da série, se calhar não. Na vida real, acho que sim, o amor justifica tudo.
– Tem algum projeto futuro que possa partilhar? Alguma ideia que esteja a desenvolver e que o entusiasme particularmente?
– Posso dizer que para o ano vão surgir dois projetos completamente distintos, em breve poderei revelar do que se trata.
– Como é que escolhe o tema a abordar a seguir? Como é o seu processo de pesquisa e preparação para tratar de temas tão sensíveis e complexos?
– Acima de tudo tem a ver muitas vezes com coisas que leio, com coisas que vejo.
– Podemos saber o que é que está a ler neste momento?
– Neste momento não estou a ler nada, estou a trabalhar nos dois projetos, que são altamente complexos e nos quais vou falar de temas que, até agora, não abordei.
– Gosta de sair da sua zona de conforto?
– Sim, e nestes dois projetos vou tentar sair um bocadinho da minha própria zona de conforto, porque, para continuar a crescer enquanto realizador, é importante continuar a desafiar-me noutro tipo de projetos. Não esquecendo que ainda vou continuar, obviamente, nesse lado social, mas com uma outra abordagem.
– Porque essa é a forma que encontrou de poder ser útil à sociedade?
– Sim, é um bocadinho isso. É a forma que encontrei de tentar passar uma mensagem à sociedade, de tentar contribuir para um mundo melhor. Porque, apesar de falar sobre temas estruturantes e complexos da sociedade, é importante não perder a esperança de que as coisas vão melhorar. E é importante cultivarmos esse lado, porque o mundo é cinzento, a realidade é muito negra e cinzenta. Não é bom empurrarmos os problemas para debaixo do tapete, mas também não é bom vivermos sempre com uma nuvem cinzenta por cima de nós.
– Se não fosse cineasta, o que acha que estaria a fazer atualmente?
– Boa questão. Provavelmente seria psicólogo, até porque, lá está, interessa-me muito esse lado complexo da forma como as pessoas reagem, agem, em certos momentos da sua vida. E como trabalho muito esse lado psicológico nas personagens, creio que seguiria essa área.
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