
Não é apenas uma cantora, Maria João é uma intérprete de mão-cheia. Cria e transforma a música de uma forma única, especial. Com uma entrega emocional intensa e uma criatividade sem limites, traz à tona uma forma de comunicar autêntica que nos envolve do princípio ao fim. Foi também assim que construiu um percurso riquíssimo e sólido na música, agora celebrado com Abundância, um álbum que inclui faixas como Ao Sol e Esperança, feito em conjunto com João Farinha e André Nascimento, aliados do projeto OGRE. Foi este o pretexto que nos levou ao encontro com uma das grandes vozes do jazz português.
Espontânea nas palavras e expressiva na forma como se movimenta, acabámos por mergulhar no seu universo mais pessoal. Confessa que o seu amor incomensurável pela música só é superado pelo amor que tem pelo filho, João, de 34 anos, revela que viveu bonitas histórias de amor, a mais mediática com o pianista Mário Laginha, com quem cresceu artisticamente, e de como as suas características físicas na infância, como ser “gordinha, usar óculos” e não ser “100% branca”, a ajudaram a moldar a mulher e artista que é hoje. Mas vamos dar a palavra à cantora, de 68 anos, que nos conduziu por diferentes paisagens sonoras.
– Ao Sol e Esperança são dois dos temas do álbum. Devem ser vividos com abundância?
Maria João – Sim, e existem em abundância. O sol é aquela bola maravilhosa que nos aquece e ilumina. Quando nasce, é uma sensação absolutamente gloriosa. Gosto da sensação de luz, de um novo dia. A esperança é algo que todos precisamos ter, e é também um poema de José Craveirinha, um dos maiores poetas de Moçambique.
– Há algum saudosismo quando se prepara um trabalho de carreira? Revisitam-se temas?
– Neste álbum só há um tema que revisito que é o Beatriz, meu e do Mário Laginha, mas com um arranjo completamente diferente e uma nova forma de o cantar. Há outros temas que não entraram no álbum mas que serão tocados ao vivo. Acho que os discos devem ser curtos, sucintos, como as frases, como uma conversa. Deve ser uma história com princípio, meio e fim.
– O Mário não participa neste disco, então.
– Cada coisa tem o seu lugar. A parceria que tivemos foi incrível. Foi mais do que profissional, fomos um casal durante oito ou nove anos. E foi muito rico o que vivemos juntos. Acabámos por crescer na música, influenciando-nos e desenvolvendo-nos, ele como pianista e eu como cantora. Ele acabou por se tornar pianista-cantor e eu tornei-me uma cantora-instrumentista. Foi uma sorte incrível trabalhar com uma pessoa tão talentosa como ele. Ele faz parte da minha abundância também.
– Já disse várias vezes que o Mário Laginha é genial. Não reconhece em si essa mesma genialidade, ou será que, quando fazemos autocrítica, somos menos generosos connosco mesmos?
– Tenho qualquer coisa de original que é só meu, algo que me dá o privilégio de poder fazer o que faço. Tenho a sorte de ter este instrumento, a voz, que é muito versátil, forte e saudável, e que me permite fazer o que quero. Acho que sou uma boa cantora, uma boa artista. Amo a arte que existe na música, reconheço-a e ambiciono-a. Sinto que tenho cumprido bem os dons que me foram dados. Fiz o meu trabalho, o meu caminho.

– Tem uma voz muito característica, que passou por mudanças ao longo dos anos. Como é que se adapta a essa transformação vocal?
– Sempre fiz muitas vozes, nunca é só uma ou outra. Tenho em mim tantas vozes quanto as personagens que habitam em mim, e por isso, às vezes, ando à procura de qual é a minha voz. Não sei se a minha voz mudou ao longo dos anos, mas sei que agora uso mais graves, uma região que sempre me fascinou, mas à qual não dava tanta atenção. Depois de tantos anos a explorá-la, ela continua saudável, e, se assim é, é porque tratei bem dela.
– Como é que se cresce artisticamente de forma a que não haja uma estagnação?
– Sendo curiosa, corajosa e sem ter vergonha na cara. Faço o que for preciso pela música. Vou em frente, desbravo caminho. O meu amor pela música é imenso. Maior que este só o que tenho pelo meu filho. Vou fazer isto até morrer.
– O processo criativo deste álbum foi diferente do que fez anteriormente?
– Não. Eu, o João Farinha e o André Nascimento começámos por gravar a parte eletrónica em Portugal, com os teclados e as melodias. Depois fomos para Maputo, onde gravámos com os músicos. Foi uma felicidade gravar com aquela gente maravilhosa.
– Moçambique é um país que guarda no coração…
– Nasci em Portugal e só comecei a ir a Moçambique depois dos 11 anos. A minha mãe é moçambicana, assim como a minha família materna, por isso tenho uma forte ligação com aquele país. Tenho lá um grande amigo, o António Prista, fundador do coletivo TP50, que foi o nosso produtor lá. Portanto, Moçambique tinha de estar presente neste disco. Era incontornável. Quando era mais nova, com 10 anos, passei por momentos difíceis na escola devido às minhas características: era gordinha, usava óculos e não sou 100% branca. Depois, fui-me “esbranquiçando”, estiquei o cabelo, emagreci e procurei, até de forma inconsciente, a melhor maneira de viver sem ser agredida. Tinha de fazer as pazes com isso. Queria mostrar que sou isto e aquilo.
– Como é que se defendia desses ataques?
– Batia em quem me tratava mal… Não fazia queixas, apenas me defendia. A história do se alguém te bater dás a outra face não é comigo.
– Que marcas é que isso deixa? Algumas inseguranças, medos?
– Não. O que me trouxe foi uma imensa força. Nada me deita abaixo e acho que isso vem dessa altura. Esse espírito de sobrevivência fica marcado. E comove-me falar disso, porque era uma experiência tão desnecessária para uma miúda tão novinha.

– Estamos hoje em dia mais tolerantes e generosos com o outro?
– Na verdade, não sei. Esta questão da imigração traz à tona algo que, infelizmente, ainda persiste nos portugueses quando se trata de pessoas de outras cores e nacionalidades. Espero sinceramente que não seja mesmo assim. Seria uma vergonha tremenda eu dizer que Portugal é um país racista. Será que não aprendemos nunca nada?
– Sempre pareceu ser uma mulher livre ou tem algumas amarras, algum espartilho?
– Sou uma mulher livre. Digo o que penso, faço o que quero. Talvez viva espartilhada pela necessidade de ganhar dinheiro, ter o suficiente para me sustentar e para poder cuidar de tudo à minha volta. Esta é uma luta que me limita, que me atrapalha. Custa-me imenso que as pessoas ainda acreditem que ser músico é apenas uma festa, uma farra, que nadamos em dinheiro. E falo, sobretudo, do jazz.
– A cultura ainda é encarada como o tal “parente pobre”.
– Sim, e o jazz então… Não vejo, por parte dos governantes, propostas que nos tragam a segurança de que precisamos de ter. Tudo parece ser tão lento, como se a cultura não fosse uma prioridade…
– Quando, tantas vezes, é ela que nos salva.
– Exatamente. Basta olhar para o que aconteceu durante a pandemia. A música, o cinema, as séries televisivas tantas vezes foram o que nos salvou.
– Como equilibra a sua vida pessoal com a carreira artística? Consegue manter uma relação amorosa?
– Neste momento, não tenho ninguém. E, para ter, teria de ser alguém realmente incrível.
– As mulheres tornaram-se mais independentes, mais exigentes…
– Também, mas as pessoas que passaram pela minha vida foram todas incríveis. O pai do meu filho, o Mário Laginha, que foi um grande amor, o João Farinha e outros namorados – sou uma pinga-amor, como se pode ver… [risos] – foram todas experiências muito boas. Por isso, agora, para alguém fazer parte da minha vida, é preciso que seja uma pessoa incrível, que esteja ao nível da música, para me oferecer o que ela me dá.
– Há momentos de solidão?
– Adoro. Sou filha única e sempre fui muito solitária. Brincava sozinha e acho que desenvolvi a minha imaginação muito por causa disso. Sinto-me bem assim e gosto mesmo da minha companhia. E isso, para mim, é um luxo. Acho que nunca mais vou viver com ninguém.
– Mas não passou a desacreditar no amor?
– De todo, não. Mas gosto de morar sozinha. Gosto de passar tempo comigo. Cada vez conheço mais casais em que cada um mora no seu lugar e depois encontram-se e é ótimo. É o melhor dos dois mundos. É inteligente até.
– Para terminarmos, o que é que seria da vida sem música?
– Não faço ideia. Para mim, seria impossível. Fazer qualquer coisa que amamos profundamente e ficar sem isso… seria terrível, a morte do artista.