Se o curso da História não lhe tivesse pregado a partida de, aos dez anos, a transformar em herdeira do trono que dominava o então imenso Império Britânico, Isabel II teria desejado uma existência simples, discreta, anónima e dedicada aos seus pequenos grandes prazeres: o contacto com a natureza, a jardinagem, a equitação, a caça, a pesca, a fotografia. Disse-o, com apenas 12 anos, ao seu instrutor de equitação: “Gostaria de viver no campo e ter muitos cavalos e cães.” Porque Isabel de Windsor, que a 6 de fevereiro celebrou 64 anos de reinado e a 21 de abril festeja o seu 90.º aniversário, nunca escondeu ter os gostos típicos de uma inglesa de classe alta. Que prefere mil vezes um visual composto por sapatos rasos de atacadores ou galochas, saia de corte amplo ou calças todo-o-terreno, conjugadas com uma malha aconchegante, impermeável largueirão, lenço na cabeça e umas simples pérolas nas orelhas, a um vestido comprido que lhe atrapalhe os movimentos, a obrigue a calçar sapatos femininamente desconfortáveis e a exibir joias demasiado cintilantes.
Não foi esse, porém, o destino que pôde traçar. A 11 de dezembro de 1936, quando o seu tio Eduardo VIII, rei há apenas 11 meses, foi forçado a abdicar para se poder casar com a americana plebeia e divorciada Wallis Simpson (ou, segundo defendem alguns historiadores, por causa da sua simpatia pelo nazismo), a coroa atravessou-se no caminho de Isabel e desviou-a, em definitivo, dos seus sonhos de criança. Nesse dia, o seu pai, o discreto duque Alberto de Iorque, sucedeu, sem grande vontade, ao irmão, adotando o nome de Jorge VI (Jorge era o seu quarto nome próprio), e a princesa, com apenas dez anos, passou a ser uma das meninas mais vigiadas, privadas de intimidade e fotografadas do mundo.
A noção de dever, porém, sobrepôs-se de tal forma à vontade de viver longe dos olhares públicos que aos 90 anos a soberana inglesa continua a cumprir todas as obrigações mais ou menos entediantes que o seu cargo lhe exige. Sem nunca vacilar ou perder o formalismo protocolar, e mantendo, ao mesmo tempo, um sorriso um tudo nada traquinas e um aguçado sentido de humor, é, sem dúvida, um dos maiores exemplos de estoicismo de que há memória.
Corredora de fundo incansável, Sua Graciosa Majestade parece nunca perder a fleuma, e a vitalidade e saúde física e mental que exibe prometem estar para durar. E porque tem realmente a longevidade nos genes, se seguir as pisadas da mãe poderá ultrapassar o centenário, ainda e sempre no trono, pois, como deixou bem claro desde o seu primeiro dia como rainha, considera que a sua missão lhe foi atribuída por vontade divina. E dessas missões não se abdica, pois se o Homem põe, Deus dispõe.
Recuemos agora noventa anos no tempo. Alberto de Iorque, que recebeu este título na qualidade de segundo filho do rei Jorge V e da sua mulher, a princesa Mary de Teck, e lady Isabel Bowes-Lyon, nona dos dez filhos do 14.º conde de Strathmore e Kinghorne e de lady Cecilia Cavendish-Bentinck, estavam a dois dias de comemorar o seu terceiro aniversário de casamento quando, às 2h40 de dia 21 de abril, lhes nasceu a primeira filha. Apesar de ter podido optar por dar à luz na imponente residência dos sogros, o Palácio de Buckingham, a “duquesa sorridente”, que além de bonita e afável, era também uma mulher descontraída e pragmática, preferiu que o parto fosse na muito mais recatada moradia onde se instalara depois de casada, no número 17 de Bruton Street, no exclusivo bairro londrino de Mayfair.
E foi nesta casa que Elizabeth Alexandra Mary de seu nome de registo passou os primeiros tempos de vida. Pouco depois, a família mudar-se-ia para uma casa maior, no número 145 de Picadilly, e ali, tendo como companheira de brincadeiras a sua única irmã, Margarida, quatro anos mais nova, a princesa teve uma infância resguardada, uma vez que o pai, que uma gaguez adquirida na adolescência tornara bastante tímido, evitava a vida mundana e o aparato da corte o mais possível, sem, no entanto, deixar de assistir aos atos oficiais que lhe calhavam em agenda.
Netas de reis, Isabel e Margarida teriam, de qualquer forma, de estar preparadas para um dia brilharem em todo o tipo de eventos de uma corte regida por estritas regras protocolares. Foram, por isso, entregues aos cuidados de uma ama à moda antiga, Clara Knight, para quem educação era sinónimo de rigor, disciplina, rotinas incontornáveis e poucos privilégios. Naturalmente, além de mil e uma regras de etiqueta e de uma sólida preparação religiosa, aprenderam muitas outras coisas, entre elas a tocar piano e a falar francês.
Quanto aos pais, eram carinhosos, atentos e próximos, mas também eles tinham a tão britânica noção de que o excesso de mimo pode estragar as crianças. E, num país que ainda tinha bem presentes na memória as imensas agruras da Guerra de 14-18, não lhes parecia de todo aceitável que as filhas se habituassem a luxos excessivos e ignorassem as carências com que grande parte da população se debatia. Não deixando, ainda assim, de lhes estimular interesses tão distintos como o hipismo, a natação, o ballet ou as longas caminhadas ao ar livre nos extensos domínios reais.
Por tudo isso, quando Jorge VI aceitou o sacrifício de carregar uma coroa para a qual não nascera, as suas filhas já eram, em todos os aspetos, verdadeiras princesas. E teriam, infelizmente, a oportunidade de o demonstrar apenas três anos depois, quando o mundo mergulhou noutro conflito atroz. Revelando uma nobreza de espírito inquebrável, os reis transformaram-se em referências de coragem e resiliência, permanecendo ao lado dos seus súbditos durante os seis longos anos que durou a II Guerra Mundial, apoiando-os moralmente em todas as circunstâncias e sujeitando-se, como qualquer outro inglês, aos constantes bombardeamentos alemães. E exigiram das filhas igual comportamento. Isabel e Margarida fizeram, por exemplo, voluntariado na Cruz Vermelha, nomeadamente conduzindo ambulâncias.
Jorge VI sempre tivera uma saúde algo débil e era, ainda por cima, um grande fumador. Um cancro de pulmão associado a outras doenças, entre elas aterosclerose, ditariam a sua morte a 6 de fevereiro de 1952, com apenas 56 anos. Nesse mesmo dia, Isabel, com 25 anos, já casada com o seu primo o príncipe Filipe da Grécia e Dinamarca e mãe de dois filhos, os príncipes Carlos e Ana, transformava-se em rainha (André só nasceria em 60 e Eduardo em 64). Estava, no entanto, bem longe do seu país no momento em que recebeu a notícia: ela e o marido encontravam-se numa visita oficial ao Quénia quando um telegrama lhes anunciou a morte do rei. Voando de imediato de regresso ao seu país, Isabel saiu do avião vestida de preto (cor que raramente usa), tendo à sua espera alguns dos mais altos dignitários britânicos, entre eles o primeiro-ministro, Winston Churchill, que a receberam já com honras de Estado.
Apesar de ter assumido desde logo o seu novo papel, a jovem rainha só foi coroada depois de terminado o conveniente período de luto. Finalmente, no dia 2 de junho de 1953, Londres amanheceu engalanada para a pompa e circunstância que um momento destes sempre teve na monarquia britânica. E foi, como manda a tradição, na Abadia de Westminster, que a jovem rainha, vestida de branco imaculado, recebeu do arcebispo de Cantuária a coroa imperial. E, com ela, mesmo que apenas a título representativo, os poderes temporal, militar e espiritual. Porque os reis de Inglaterra são os líderes máximos da Igreja Anglicana desde que, em 1534, Henrique VIII cortou com a Igreja de Roma.
Tendo sempre como prioridade o serviço à pátria, Isabel não abdicou, no entanto, de ter vida própria. Rezam as biografias reais que com apenas 13 anos, durante uma visita com os pais ao Royal Naval College de Dartmouth, terá sido vítima de uma paixão fulminante por um jovem cadete de 18 anos que, por acaso, era, tal como ela, tetraneto da rainha Victoria. Bonito, charmoso, com um porte impressionante e um sentido de humor que parece divertir verdadeiramente a rainha, Filipe, nascido em Corfu, na Grécia, não era príncipe, mas era neto, do lado paterno, do rei Jorge I da Grécia e da grã-duquesa Olga Constantinovna da Rússia e, do lado materno, do príncipe Louis de Battenberg e da princesa Victoria de Hesse e do Reno. Tanto sangue real possibilitou que a futura rainha pudesse concretizar a sua paixão.
O casamento, que foi celebrado na Abadia de Westminster a 20 de novembro de 1947, obrigou Filipe a abdicar dos seus apelidos de batismo, dos direitos de cidadão comum, da carreira militar e da religião em que fora educado, a ortodoxa. Transformado em príncipe consorte e duque de Edimburgo, assumiu o secundário papel de “marido de”. Mas, quase 70 anos depois, e a poucos meses de completar 95 anos, só não esteve, indefetível, ao lado da soberana, quando a saúde o impediu. E se pouco se sabe como será a sua relação dentro de portas, no exterior o casal aparenta sempre uma cumplicidade notável, a que não faltam sorrisos divertidos e umas boas gargalhadas em simultâneo.
Nem sempre especialmente popular, pelas muitas gaffes que lhe são atribuídas, Filipe percorreu ao lado da mulher quase todo o mundo em representação diplomática do seu país, desempenha ao lado dela o papel de anfitrião de inúmeras receções, leva-a pela mão até ao trono, ano após ano, na abertura do Parlamento, e partilha com ela os mil e um compromissos de natureza bem mais comezinha que fazem parte da agenda de um chefe de Estado.
O desempenho do papel de mãe seria bastante mais afetado pelas suas obrigações oficiais de rainha do que a sua relação com Filipe. Por um lado, porque era normal que as crianças das classes altas fossem entregues aos cuidados de nannies, por outro, porque a sua agenda sobrecarregada a obrigava a ausências regulares e muitas vezes prolongadas. A essa falta de referências familiares e, naturalmente, às enormes mudanças de mentalidade que se operaram na segunda metade do séc. XX se terá ficado a dever o facto de os quatro filhos de Isabel e Filipe não terem sido tão dóceis e submissos como se esperava deles. É verdade que na infância e adolescência pouco deram que falar, em boa parte porque a imprensa era menos agressiva para com a família real, mas a partir de 92, ano em que a princesa Ana se divorciou do seu primeiro marido, o capitão Mark Philips, tudo começou a desmoronar-se como um castelo de cartas. Por essa altura, também já era mais do que evidente que Diana Spencer não era feliz ao lado de Carlos, com quem se casara em 1981, com apenas 20 anos. Bonita, simpática, mas bastante tímida, a princesa de Gales, que era mais nova do que o marido 13 anos, nunca conseguiu afastar Carlos da sua grande paixão da juventude, Camilla Parker Bowles, também ela casada. E a tensão no seio da família real aumentou quando tanto Carlos como Diana assumiram em entrevistas que tinham sido infiéis. O divórcio foi decretado em 1996, precisamente o mesmo ano em que também André se separava da mulher, Sarah Ferguson. E quando já nada podia piorar, em 1997 Diana morreu com o namorado, Dodi Al-Fayed, num acidente, em Paris, que ficou sempre envolto em algum mistério, chegando a falar-se em possível homicídio.
Em 2005, o casamento de Carlos com Camilla iniciou, finalmente, uma longa trégua. E, aos poucos, a imagem da monarquia foi sendo reabilitada. E a união de William com Kate Middleton foi a cereja no topo do bolo. A aliança de sangue entre o sucessor do herdeiro do trono e uma jovem saída da classe trabalhadora aproximou como nunca a família real dos súbditos, que quase consideram os príncipes George, de dois anos e meio, e Charlotte, que faz um ano a 2 de maio, seus iguais. Mais de mil anos depois da sua fundação, a monarquia inglesa descia do seu pedestal para se aproximar do homem comum. Uma revolução tornada possível porque, apesar da sua avançada idade, Isabel II soube adaptar-se aos ares dos tempos. Por tudo isso, os seus 90 anos serão mais uma ocasião de grande festa para os ingleses.
Isabel II de Inglaterra: 90 anos de recordes
Isabel tinha dez anos quando a coroa se atravessou no seu caminho e a desviou, em definitivo, dos seus sonhos de criança. A partir desse momento, a princesa passou a ser uma das meninas mais vigiadas, privadas de intimidade e fotografadas do mundo.