A timidez é visível ao primeiro contacto, mas a simpatia e personalidade vincada também. Ivo Canelas, de 34 anos, sempre quis ser actor e, assim que ouve a palavra "acção", esquece estes traços e transforma-se na personagem que tem de interpretar. Aquilo que menos gosta de fazer é planear a sua vida, seja a nível pessoal ou profissional. Divertido, diz até que isso "é uma característica típica das mulheres". Não é de estranhar, portanto, que, apesar de manter há três anos uma relação com a produtora Sandra Alves, de 33 anos, ainda não pensem sequer em ter filhos ou em casar-se.Actualmente está a gravar a série Liberdade 21, no papel de Afonso Ferraz, um projecto aliciante que diz conquistá-lo diariamente .Recebeu este ano o Globo de Ouro na categoria de Melhor Actor de Cinema, pelas suas interpretações em Call Girl e O Mistério da Estrada de Sintra, prémio que, como nos explica nesta entrevista, acabou por ter um sabor agridoce. – Esperava o Globo de Ouro que recebeu?Ivo Canelas – Foi um ano de trabalho muito intenso e sei o que fiz, mas também sabia que a competição era cerrada. Uma parte de mim achava que poderia ganhar, mas aquela parte do menino introvertido até rezava para que isso não acontecesse. [risos] Foi nitidamente uma surpresa… – Sei que o prémio teve um sabor agridoce…- A partir do momento em que aparece o meu rosto no ecrã, desligo e quando aparecem imagens dos filmes, já estou ausente. Tinha alinhavado na minha cabeça o que deveria dizer por ambos os filmes e acabei por não o fazer. O lado doce do prémio foi ter falado do António-Pedro Vasconcelos, que me ensinou várias coisas sobre a liberdade, o lado amargo foi não ter feito os agradecimentos devidos. Por personalidade e feitio não tenho interesse em expor-me, mas tenho a responsabilidade de valorizar o trabalho das pessoas que estão envolvidas no meu. Estava em Nova Iorque a lavar pratos alegremente quando a Pandora da Cunha Telles me telefonou com a proposta de fazer o Eça de Queiroz, em O Mistério da Estrada de Sintra. Não fiz casting nenhum, e isto foi profundamente ousado e arriscado da parte dela, o que tem de ser valorizado. Quando recebi o prémio, deveria ter agradecido à Pandora pela sua ousadia e paixão e aos outros como o fiz. Se o tivesse feito, o prémio teria sido só doce. – Sempre quis ser actor?- Sim, acho que nunca quis ser tão claramente outra coisa como quis ser actor. – Mas já tinha alguma apetência em criança?- Não, excepto ser introvertido. Ao contrário do que as pessoas dizem ou possam pensar, acho que a timidez e a introversão são mais características da profissão de actor do que de qualquer outra. – Não é um contra-senso? Uma pessoa introvertida gosta de passar despercebida, e isso não acontece com um actor…- É verdade. A minha timidez vai até à palavra "acção", depois disso já passou. Acho que é preciso ter alguma reserva emocional e social para podermos ter algum interesse como actores, e daí a minha timidez, mas também as minhas reservas em falar sobre mim. Temos de ser um pouco misteriosos para sermos interessantes durante o tempo de sobrevivência da profissão. – Não será então a profissão uma forma de libertação?- Também. A representação é sem dúvida uma forma de catarse. A transferência de emoções para as personagens é quase uma terapia. – Alguma vez sentiu que, ao vestir a pele de uma determinada personagem, essa experiência possa ter tido influência na sua vida?- Funciono sempre com comparações… Acho muito difícil representar alguma coisa que não tenha sentido ou experimentado até uma certa extensão da minha vida. Tudo é comparável, embora em graus diferentes. Os actores têm de ter uma capacidade muito abrangente e têm de tentar, acima de tudo, entender o que cada um é. Ninguém é nada sem ter uma razão muito forte, e o interessante é tentar descobrir essas razões. – Há pouco mencionou o facto de ter vivido em Nova Iorque, onde passou quatro anos. Quais são as recordações que guarda com mais carinho?- Tantas… Acima de tudo, há uma noção de liberdade muito específica, muito frontal e que é muito importante trazer para o nosso país. Há uma maneira de trabalhar americana que me interessa muito, pois é muito positivista. Seja qual o papel, a função ou a área, o importante é o estímulo. – Sempre teve o apoio da sua família nas decisões que tomou?- Para ir para Nova Iorque, sim, na decisão da profissão, tive as questões normais de um país que define os actores de uma certa forma. O facto de ser uma situação precária também preocupou, naturalmente, os pais. – Tem dificuldade em lidar com a fama inerente à profissão?- Acho que têm de se desenvolver algumas coisas primeiro para que eu ache que a fama é necessária e consequente. Para já, acho que é um pouco estéril e puxada para valorizar uma série de trabalhos. Acho que não temos estrutura para dizer que alguém é inevitavelmente famoso. Acho que é necessário e faz parte, mas quando essa fama se torna intrusiva, é muito complicado. – Está a gravar a série Liberdade 21, que vai ser exibida na RTP. Como tem sido?- Tem sido fantástico. Houve, desde o início, da parte da produção, uma aproximação muito diferente do costume, bastante mais coerente. O facto de ser um produto original é essencial, depois, há um interesse muito grande em subir a fasquia, e tudo isso para mim é fantástico e entusiasmante. – Grava várias vezes por semana, o que deve deixar pouco tempo para a sua namorada. É preciso ter uma base sólida…- [risos] Acima de tudo, é preciso ter sorte com as pessoas com quem nos cruzamos na vida. Depois, também é preciso muito carinho para as manter. Acho que é preciso ter uma paciência muito especial que eu não sei se teria. Os músicos chegam ao fim do ensaio e põem o instrumento no canto da sala, os actores vão jantar com ele. A minha namorada trabalha no meio, em produção, e por isso já o conhece bem, o que ajuda muito. – A junção de duas pessoas do mesmo meio acaba por se tornar natural…- Acho que sim. A junção produtor/actor, realizador/actor parece-me mesmo bastante natural. No caso de dois actores, é que julgo ser mais difícil, pois deve ser bastante cansativo, é muito ego envolvido… – Foi no meio profissional que se conheceram?- [pausa] Sim, foi num filme em que trabalhámos juntos. – Faz parte dos vossos planos casarem-se ou terem filhos?- Não temos planos. A questão dos filhos nunca foi algo que me passasse muito pela cabeça. Acho que há uma série de coisas em que não vale a pena tomar grandes decisões, pois a vida acaba por decidir por nós. Os filhos são uma responsabilidade profunda e para a vida, reconheço as minhas responsabilidades, mas também sei os meus limites. Conheço demasiado bem o meu egoísmo. – Evitar planos será consequência da instabilidade da profissão? – Acho que fazer esse tipo de planos é uma característica típica das mulheres. [risos] Também conheço muitos homens que fazem muitos planos, mas eu não sou assim. Pode ter vantagens ou desvantagens, mas pelo menos sou honesto. Sou aquilo que aparento ser.