Ao final da tarde de 8 de Março de 2005,
Miguel Graça Moura regressava a Lisboa, depois de ter ido a Santo Estêvão ver a obra da casa que ali estava a construir, quando o seu carro, um desportivo descapotável, se despistou e foi embater contra uma árvore. O maestro não levava o cinto posto e, no seu caso, foi isso que lhe salvou a vida, pois foi cuspido do carro, que ficou desfeito. Graça Moura saiu muito maltratado deste acidente brutal, que ainda hoje não sabe como aconteceu – os médicos põem a hipótese de ter sido na sequência de um microdesmaio -, mas, após seis complicadas intervenções cirúrgicas, anos de fisioterapia e muita força de vontade, conseguiu recuperar, restando-lhe apenas um ligeiro coxear. Retirado da vida pública desde o seu polémico afastamento da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) e da Associação Música, Educação e Cultura – projectos que criou de raiz e dirigiu durante 12 anos -, o maestro, e também arquitecto, dedicou-se à escrita de uma autobiografia romanceada que dedica aos seus 32 sobrinhos, O Prazer – Memórias Desarrumadas.
Em tom de conversa com
Rachida, a belíssima argelina que ficcionou e com quem vive sete dias de paixão tórrida em Paris, faz, ao longo de 600 páginas, uma viagem pelo seu universo íntimo, relatando episódios amorosos e familiares e os momentos duríssimos após o acidente, mas também pela sua vida profissional, lembrando tanto os momentos áureos da sua carreira artística, como o grande abalo que foi o processo da sua saída da OML. Mas não só. Faz, ainda, não poucas reflexões sobre mil e um temas que o interessam: política, religião, educação, arte, justiça, comunicação social…E prazer, como se depreende do título. Não apenas na vertente carnal – que não deixa de lá estar, em descrições assumidamente ousadas -, mas em todas as outras possíveis para um hedonista convicto: da leitura ao cinema, passando pela boa mesa e, inevitavelmente, pela música.
Foi na casa de Santo Estêvão, que conseguiu concluir, e onde vive hoje com a sua companheira de há oito anos e ao lado de quem quer morrer,
Rita, que este homem, nascido há 62 anos numa família ultraconservadora e de ultradireita da alta burguesia portuense – mas que ousou ter a coragem de "ser a carta fora do baralho" -, nos recebeu para uma longa conversa isenta de tabus.
– Esteve uma semana em coma, passou vários meses no hospital e esteve reduzido a uma cadeira de rodas. Que marcas lhe deixou esta experiência?
Miguel Graça Moura – Foi um processo longo e complicado, de muito sofrimento, mas extraordinariamente educativo, fez-me perceber a efemeridade da vida. Acordei do acidente cheio de dores, com tudo partido: costelas, omoplatas, braços, pernas, pés, e com várias perfurações pulmonares… a sorte foi que não fracturei nem a coluna nem o crânio. A ortopedia é o mundo da dor física… E as mil e uma humilhações do quotidiano, quando estamos limitados nos movimentos, são tremendas. Querer um objecto que está a meio metro de nós e não chegarmos lá…
– Diz que gostaria de ser recordado como alguém que viveu como quis e morreu quando quis. Quando se viu numa cadeira de rodas, quis morrer?
– Não, porque, apesar de não se saber como ia evoluir e de não se prever uma recuperação total, não tive a ideia de que fosse uma situação eterna. Sabia que havia uma parte que era trabalho meu e tive muita disciplina na fisioterapia. Porque são ganhos de milímetros dia a dia, são meses e meses sem notar progressos nenhuns, um desespero!
– Mas põe a hipótese de decidir a hora da sua morte?
– Claramente! Se o nascimento é uma lotaria, ao menos que a morte decida eu, se tiver a sorte de estar lúcido. E já preparei a família para o facto. A liberdade individual nessa matéria para mim é indiscutível, o suicídio assistido é um direito sagrado! E há um momento em que, mesmo que estejamos lúcidos e sãos, podemos achar que aquilo que a vida nos está a dar e que nós estamos a dar à vida já não compensa.
– Isso é coerente com a sua postura hedonista. Mas na sociedade judaico-cristã – e foi educado numa família conservadora -, o prazer, que dá título ao seu livro, não é lá muito bem visto ou, pelo menos, publicamente assumido…
– Mas eu pretendo é alargar infinitamente o conceito de prazer, que nós, judaico-cristãos, temos tendência a associar ao prazer carnal, logo, ao pecado. Há tantos outros prazeres…
– Nessa lista de prazeres, a mulher não está no ‘top’?
– Não sei… Talvez, mas sobretudo como inspiradora do prazer, e não só como proporcionadora dele. A mulher tem inspirado milénios de arte! Nisto recupero o espírito do cavaleiro andante, que fazia feitos pela sua dama. Eu sempre quis fazer feitos para me tornar digno das mulheres que me inspiraram. Já as mulheres não precisam de fazer nada para se tornarem dignas dos homens, são superiores em tudo, porque juntam a inteligência à intuição e à emoção. Sou um convertido à superioridade feminina há décadas. Aliás, uma coisa que não perdoo ao Islamismo é a forma como trata a mulher.
– E é melhor viver os outros prazeres na companhia de uma mulher? No livro partilha muitos deles com Rachida…
– Claro! O maior prazer do mundo é partilhar! É muito melhor beber um bom vinho ou ver um bom filme na companhia de uma mulher!
– Ou até mais do que uma, como acontece quando a si e a Rachida se junta Yasmin… Elas são ficcionadas. E as situações?
– Tudo o que ali se passa já se passou na realidade com outras pessoas, isto é autobiográfico. E, sim, construí várias relações triangulares na vida, sempre com duas mulheres. Aceito que uma mulher queira estar com dois homens, mas nisso é que não pode contar comigo!
– A verdade é que a Rachida seria impossível, porque é perfeita, e a perfeição não existe.
– Completamente, já que foi inventada, que reúna a súmula de tudo! [risos] Ela é perfeita física e moralmente. Inclui até uma das características mais notáveis da Rita, o bom feitio. Porque o grande desafio das relações humanas não são as paixões nem os desamores, é a coabitação. A minha convivência com a Rita é perfeita, porque permitimos espaço a cada um, ela adora as suas plantas e animais, eu adoro livros e piano. Mas não nos ensinam na escola, ninguém nos ensina as relações humanas, e isso é que é central na vida!
– Revela que foram 78 as mulheres que aceitaram partilhar a intimidade consigo. E o que é para si partilhar intimidade? Porque pode ter-se sexo sem partilhar intimidade…
– É partilhar o corpo e abrir o coração, mesmo que por pouco tempo. Nunca fui para a cama com ninguém só por ir. A minha iniciação sexual, aos 19 anos, teve uma qualidade de tal ordem, uma tal carga poética, estética e sentimental, que me marcou para a vida inteira. Depois daquilo, nunca mais podia ter relações banais. Mas é claro que há relações de âmbito mais carnal, outras mais platónicas, so what?
– E como é que se lembra de quantas foram? Foi tomando nota numa agenda?
– [ risos] Não, fui-me lembrando à medida que ia escrevendo, foi isso que me permitiu contá-las.
– Portanto, assume-se como um mulherengo…
– De maneira nenhuma! Detesto essa palavra! Para mim, o mulherengo é o coleccionador de mulheres, é a diferença que há entre o
D. Juan e o
Casanova. O D. Juan, mal acabou de seduzir a primeira, já está a pensar na próxima, o Casanova é o contrário, é um artista na arte de amar mulheres. Ele adorava as mulheres, há imensos testemunhos das amantes dele que dizem que quando estava com uma a fazia sentir-se "a" rainha. Era um tipo extraordinariamente ternurento, um respeitador de mulheres, aquilo tudo que o D. Juan não é.
– Falou da sua iniciação como um momento que o marcou para a vida. Deve ter sido uma mulher muito especial…
– Tive a sorte de conhecer mulheres de qualidade excepcional, mas a
Teresa foi de facto especial. A primeira é sempre! Já namorávamos há cinco anos – desde os meus 14 anos e dos 21 dela – e tudo foi muito bem pensado. Ainda havia o mito da virgindade e queríamos que quando chegasse a altura fosse marcante.
– Catorze e vinte e um!!!
– Pois! E se nessa idade as raparigas já são muito mais maduras que os rapazes, agora ponha-lhe a ela mais sete anos! E aos 14 anos eu era um patetinha, um idiota chapado. Quem vivia numa família da alta burguesia portuense como eu, que só saía dali para o colégio ou para as casas das outras famílias com o mesmo estatuto social, não conhecia nada do mundo. A Teresa estava a acabar o curso de assistente social e, portanto, era o contrário, era o mergulho na brutalidade do mundo real. Quando saí com ela pela primeira vez, começou por me dizer: "
És um tipo com piada, percebe-se que és um rapaz com sensibilidade, mas és tão parvo, tão cheio de ti!" Fez uma análise de tal forma implacável sobre mim, disse-me coisas tão inteligentes e certeiras, que fiquei apaixonadíssimo. Ah! Aquilo valia a pena conhecer! E é pela mão dela que eu, que até aí vivia num mundo à parte, descubro o que são classes sociais, o que é miséria, o que é a vida cheia de dificuldades.
– Sendo um esteta, um cultor do Belo, quase um obcecado pela beleza feminina, alguma vez se envolveu com uma mulher que considerasse feia?
– Nunca. Porque a beleza, para mim, tem um poder de arquétipo, de símbolo ancestral, fico completamente indefeso. Uma mulher bela é um milagre ambulante. E não estou a falar, nem de perto, nem de longe, só de beleza física. Essa tem de ser habitada por dentro. Eu adoro as imperfeições do corpo da minha companheira, porque cada vez mais gosto do interior dela. O amor é uma construção, e essa construção leva tempo e acumula capital. E quando esse tempo foi longo, e bonito, e bom, vale mais do que qualquer ruga indevida ou qualquer seio mais caído. Para mim, o Belo faz parte daquilo a que chamo o triângulo dos ‘Bs’, com o Bom e o Bem. E acho que com base numa filosofia da estética se pode construir uma ética. E até uma certa profilaxia social. Porque nos momentos de beleza elevamo-nos aos píncaros e ficamos, naturalmente, defendidos da mesquinhez, da rasquice, da golpada, da violência. O Belo tem um efeito purificador.
– Dedica o livro aos seus sobrinhos. Tem uma relação muito próxima com eles?
– Sou o oitavo de nove filhos e só dois de nós não tivemos filhos, os outros sete tiveram 32, que já se se casaram quase todos e produziram 40 sobrinhos-netos. Como eu passava a vida a viajar, acompanhei-os pouco. E a minha família, com muita subtileza, foi sempre neutralizando um bocadinho a influência "perniciosa" que eu pudesse ter sobre eles, dizendo: "
O tio Miguel é artista!" Que é o mesmo que dizer: "
Não é modelo para copiar!" Mas percebi que, apesar disso, eles tinham algum fascínio sobre este tio fora do baralho. E descobri que tenho sobrinhos fantásticos. E o ano passado instaurei uma tradição: no último sábado de Setembro, reúno a sobrinhada toda em minha casa, para recuperarmos o tempo perdido. Depois dessa primeira reunião, fiz a minha sexta operação, e no hospital deu-me uma febre enorme de escrever este livro, para lhes deixar uma espécie de testamento: uma história da família Graça Moura (que não é muito conhecida e em alguns aspectos merece sê-lo), da minha própria vida, que é muito cheia, muito rica e muito variada, e também algumas das minhas ideias sobre a vida e o mundo. Porque o livro também tem ensaio. Como falar disso tudo ia ser longo e, portanto, chato, a estratégia foi fazer uma conversa. E para ser uma conversa, inventei um romance.
– Hoje também está mais próximo dos seus irmãos, que vivem no Porto…
– Sim, e isso aconteceu de uma forma interessantíssima, já depois dos meus pais morrerem. Tínhamos uma casa enorme, na Foz, e nenhum de nós a podia manter. Antes de a vender, tínhamos de a desmontar e partilhar o recheio. Normalmente, nas famílias, quando há partilhas, há grandes sarilhos, por vezes até cortes de relações. No nosso caso, funcionou exactamente ao contrário. Porque o meu irmão mais novo propôs fazermos entre todos um leilão dos bens, virtual, porque era feito com base no dinheiro que receberíamos com a futura venda da casa. Resultou às mil maravilhas, porque cada um acabou por ficar com aquilo que queria, mas como o leilão fazia subir o valor das coisas, os outros que não as licitavam ficavam com mais dinheiro. Passávamos naquilo um fim-de-semana por mês, e como as minhas irmãs são cozinheiras do outro mundo, eram também momentos gastronómicos de excelência e de grande galhofa e divertimento. E ao fim de um ano, quando acabámos, já não queríamos dispensar aquilo. Ainda hoje, todos os meses, os irmãos se juntam para passar um dia inteiro.
– No livro também fala da sua saída da Metropolitana. Acusa Santana Lopes disso, como vingança pelo facto do maestro o ter ridicularizado na questão da ‘gaffe’ dos concertos para violino de Chopin…
– Santana Lopes disse isso numa entrevista! A que respondeu por escrito! Ele não era obrigado a saber que Chopin nunca escreveu concertos para violino, mas para isso é que serviam os assessores, para o ajudarem a esclarecer alguma dúvida antes de responder. Ou seja, aquela anedota já lhe estava colada à pele. E eu falei nisso numa entrevista a uma revista estrangeira que deve ter dois assinantes em Portugal, se tiver! E não disse nem o nome nem o cargo dele! A jornalista perguntou-me como estava a cultura no meu país e eu respondi:
"Vai mal. A classe política em geral é inculta, a cultura tem um orçamento ridículo e até temos um responsável que inventou os concertos para violino de Chopin." Mas alguém lhe mostrou a revista e ele acusou o toque, pois logo nesse ano, a sua primeira atitude é não pagar o que deve à Metropolitana, então recém-formada. Estamos a falar, no princípio dos anos 90, de 22 mil contos. Por isso, quando ele ganha a Câmara de Lisboa, dez anos depois da história do Chopin, pressenti logo que vinham lá sarilhos.
– E que foram…?
– Primeiro, pensou que sendo a câmara o patrocinador maioritário, podia demitir-me. E tentou. Mas não podia, só em assembleia geral, onde não conseguiu, porque a minha maioria era confortável. Depois, fez o número da auditoria, que não revelou qualquer ilegalidade, mas que deu muito cabo da imagem da orquestra, perdemos alguns patrocínios, e eu comecei logo uma política de austeridade. Depois, à boa maneira dos gangsters, fechou ainda mais a torneira. Porque o Estado representava 70 por cento do orçamento e Santana Lopes, que era número dois do partido no Governo, mandou os cinco ministros e os secretários de Estado, que também eram patrocinadores, cortar as verbas! Deviam um milhão e duzentos mil euros à orquestra no dia em que eu saí. Qual é a instituição cultural que pode viver com um buraco destes?! E eu não fui expulso, como disse a comunicação social. Saí porque, quando entrámos no terceiro mês sem salários, já havia ali dramas pessoais tremendos, 160 famílias dependiam daqueles ordenados!
– E por que é que só vem falar disso agora?
– Estive calado à espera que se fizesse justiça, até que os meus advogados me disseram que podia esperar sentado. Porque neste momento o que existe é uma queixa-crime contra mim, feita há seis anos, e que até hoje deu zero!
– Então não é acusado de gastar verbas avultadas da OML indevidamente, com compra de prendas como, por exemplo, vestidos?
– Não sou acusado, não senhor! Escreveu-se isso nos jornais, mas não há nenhuma acusação sobre mim. Aparece uma factura de um vestido comprado na Tailândia para dar a uma senhora. Sim, comprei-o, foi um acto de gestão. A Metropolitana foi a orquestra portuguesa que viajou mais para o Oriente, e isso não se consegue falando com os directores dos festivais e sim com as secretárias deles. E quem conhece o Oriente sabe que a tradição manda que nessas situações se dêem presentes… Aliás, a lei permite que as empresas tenham até cinco por cento do seu orçamento com esse tipo de despesas confidenciais. E o revisor oficial de contas verificou que na OML nunca ultrapassámos os dois por cento. Mas foi óptimo para fazer títulos na comunicação social, o maestro até comprava vestidos para as tailandesas!
– E agora veio também a público apontar um dedo à nova ministra da Cultura. Isso não será marketing para vender o seu livro?
– Nem pensar! O que acontece é que o livro saiu pouco antes da nomeação da
Gabriela Canavilhas, que foi minha sucessora na Metropolitana e agora tenta fazer currículo à minha custa. Dizer que encontrou uma instituição arruinada por mim, quando o que encontrou foi uma instituição descapitalizada, porque o homem que queria pôr-me dali para fora deu ordens para que não fosse pago à orquestra o que lhe é devido! E bastou pagarem o que deviam e a Metropolitana caminhou! Além disso, ela não só desvirtuou completamente o meu projecto como, e esta é a cereja em cima do bolo, apagou o meu nome como fundador dos textos dos programas da orquestra. É uma coisa extraordinária, toda a gente sabe que aquele projecto foi concebido por mim de A a Z!
– Parece querer comprar uma guerra…
– Está em causa a defesa do meu bom nome! E eu estou de consciência absolutamente tranquila.
– Mas reconhece que a saída da OML foi um grande abalo, um momento em que a sorte que sempre disse ter o abandonou…
– Se calhar até não… Pelo facto das responsabilidades tremendas que tinha na Metropolitana, trabalhava 18 horas por dia e não tinha fins-de-semana, só descansava quando ia ao estrangeiro dirigir uma orquestra. E se não tivesse tido o acidente, teria continuado naquela vida louca, um dia tinha um AVC e acabava numa cadeira de rodas! Por isso, pode parecer uma ironia, mas hoje agradeço ao Santana Lopes e ao acidente. Porque foi graças a eles que consegui esta qualidade de vida. Agora tenho uma das coisas mais maravilhosas do estatuto de reformado: tenho espaço, silêncio e mando no tempo! Antes, ganhava exactamente seis vezes mais, mas não tinha a qualidade de vida que tenho hoje.