Patrícia do Pilar Henriques Reis, escritora, jornalista e criativa, tem 39 anos, é casada e mãe de dois filhos de uma anterior relação:
Sebastião, de 14 anos, e
Henrique, de dez. Endiabrada, pródiga e doce, é a
wonder woman da
Egoísta, uma revista trimestral ultrapremiada, do grupo Estoril Sol, que edita desde 2000, e é tão estupenda no grafismo e no recheio que a alinhamos na estante, entre os livros. Depois de um estágio na revista
Time, em Nova Iorque, tornou-se um verdadeiro braço armado da cultura portuguesa da melhor qualidade: produz livros e álbuns de referência, historia exposições universais, inova e coreografa, pinta Lisboa de outra cor e acrescenta-lhe riso. Após quatro romances, acaba de publicar, quase em simultâneo com o seu
Diário de Micas, dirigido ao público infantil, o seu quinto romance. Chama-se
Antes de Ser Feliz e parte de uma ideia singular: começa quando termina.
Recebeu
Rita Ferro no seu ateliê na Avenida da República, Lisboa, um cenário futurista onde o rasgo e o humor nos assobiam como sílfides.
Rita Ferro – A tua prosa é luminosa e transmite paz, senti o mesmo em livros anteriores. Como te resguardas para escrever sem gritar, com uma vida bruta como a tua?
Patrícia Reis – Escrevo em momentos de silêncio. Poucos. Não escrevo todos os dias. Tenho um ateliê, o 004, com o
Francisco Ponciano e uma equipa de seis pessoas. Há trabalho e stresse diários que não me permitem escrever. Talvez seja por isso que digo que escrever é condição, não é profissão. Não paga as contas. Seria bom pensar que, no futuro, a escrita seria apenas o meu meio de sustento, mas duvido seriamente. Por outro lado, adoro o que faço no ateliê: exposições,
sites, a
Egoísta, livros…
– Mexes bem na infância, reparei. Mas como num cofre que é só teu e em que não deixas ninguém tocar. Percebes a minha pergunta? Esquece agora o enredo.
– A infância pode ser um período perturbador. Nos livros que escrevo surge muitas vezes como justificação e caracterização de personagens. O que realmente me interessa na escrita é o espelho das pessoas, o rasto que deixam, os actos e consequências. Tudo começa na infância, não é? Aí, onde sonhamos e descobrimos as nossas fragilidades e as dos outros. É um tempo poderoso.
– A infância, quase sempre, atraiçoa as promessas que faz. O homem da tua história é um guerreiro a querer resgatá-las?
– Este homem acredita naquele amor de uma forma quase definitiva, como uma questão de honra. O mais interessante será, porventura, a relação que estabelece com o pai da rapariga que ama. É uma relação de amizade, de bondade e, se quiseres, um prolongamento do amor que sente por ela. Acredito que a amizade é o sentimento mais poderoso de todos, o mais transfigurador e duradouro. Aquele que pode mesmo salvar-nos, fazer de nós melhores pessoas. Desculpa, parece o discurso de uma menina boazinha. Não que eu não seja, mas se alguém retira uma parte do que digo aqui ainda me arrisco a ganhar um ‘prémio irónica’ num pasquim qualquer: ‘Prémio para a boazinha do mês’. Não há paciência para esta atenção ao que se diz, a esta hipocrisia social que vivemos hoje. Se retirarem uma única citação desta entrevista, deves-me um almoço!
– Deixemos a mediania. Sabes o que senti neste livro, além da maravilhosa história de amor? Que a infância é a única coisa que não se esquece e que tudo o resto é mais ou menos perecível. E nunca tinha percebido isto de uma forma tão clara…
– Talvez o passado seja a nossa identidade. Oiço as pessoas à minha volta e há sempre algo que as transporta à infância. Como se fosse uma impressão digital. Infelizmente, vivo muito lá atrás. O meu marido diz-mo muitas vezes. Gostaria de mudar essa faceta da minha personalidade, às vezes. Noutras, acredito que estou perante um território que conheço bem e, por isso, deixo-me estar. É confortável e explica muita coisa, sobretudo explica como funciono, a velocidade que imprimo aos meus dias.
– O teu livro chama-se Antes de Ser Feliz. A ideia de que a verdadeira história começará a partir do epílogo é, para mim, um achado. Obrigou-te a uma arquitectura prévia?
– Se disser que sim, minto. Escrevo por impulso, por rajada, a história vai-se construindo conforme as personagens se apresentam e exigem. As personagens adquirem um poder imenso a determinada altura e eu passo a viver duas vidas: a minha e a que está dentro do livro. É um pouco esquisito, mas, ao mesmo tempo, bom. Consigo estar temporadas longas sem escrever ficção. Mantenho o blogue diariamente (vaocombate.blogs.sapo.pt) e, de momento, divirto-me imenso com uma colecção infanto-juvenil que comecei para os meus filhos e que foi parar ao Plano Nacional de Leitura, chama-se o Diário do Micas. São mistérios passados nos museus. Os museus, lá está, que fizeram, alguns, parte da minha infância.
– Mas voltando ao teu romance, que ainda me ressoa: para mim, a tua heroína não voltará àquele homem. No entanto, ele acha que esperar em vão é preferível à felicidade sem ela, o que parece paradoxal, mas, no que me toca, entendi na carne. Achas que haverá muita gente a entender isto?
– Não faço ideia, o livro quando está pronto é do leitor, está nas suas mãos e imaginação. Gosto de pensar que este homem viu o seu sonho concretizado, que esta mulher regressa à Figueira da Foz para ser feliz, nem que seja apenas para viver, como todos nós, migalhas de felicidade.
– Todos os teus livros oferecem esperança e dás ao sofrimento uma dimensão salvífica. É generosidade tua ou nem te apercebes?
– Uma vez disseram-me – e não era um elogio – que sofro de excesso de generosidade. Procuro estar disponível para os outros. Nem sempre estou. Tenho os meus dias. Quanto ao sofrimento, julgo que é inerente à minha forma de contar uma história. Não sei fazê-lo de outra forma. A escrita também é uma terapia, não achas? Mesmo que não seja autobiográfica – não é no meu caso – pode ajudar a esclarecer e a ‘arrumar’ assuntos.
–
"Serei sempre o teu primeiro homem" é uma frase que faz estremecer qualquer mulher. Não te zangas se perguntar se alguma vez a ouviste na vida?
– Ouvi melhor:
"Nasci para estar contigo." Disse-me o meu marido no dia em que nos casámos. Sinto que o amor me salvou, sabes, mas a verdade é que a vertigem dos dias é dramática. Um casamento, nos dias que correm, devia ser avaliado em anos caninos. Um ano equivale a sete.
– Outra coisa: chamas às personagens Pedro e Inês e uma terceira diz às tantas: "Pedro e Inês… está certo desde há séculos…" Ora bem: a Inês galega, da nossa História, foi morta pelo padrasto, e as lágrimas derramadas transbordaram o Mondego. O que é que está certo?
– Não quis invocar o mito de Pedro e Inês ou, se preferires, apeteceu-me apenas recordar que há uma ideia de amor eterno que faz parte da nossa História. D. Pedro, rezam as crónicas, era um homem feio e gago, mas acreditou no amor até depois da morte. Isso é o melhor de tudo? Sim, sou uma romântica.
– Além de romântica, és também muito bonita e observo que a beleza raramente é garantia de felicidade. Não é o teu caso. Priorizas bem as coisas, cheira-me que serás excepção. Mas deixa-me fazer-te uma pergunta incomum: há algum aspecto concreto em que a beleza possa atrapalhar uma vida?
– Ter um palminho de cara não foi fácil de gerir, sobretudo profissionalmente. Ainda hoje pode ser um obstáculo. No meio literário, por exemplo, a beleza não te leva a lado nenhum, ou se levar é para rótulos de pop e light que me cansam e enervam. Há muita maldade e mesquinhez. Se fazes parte de um lobby, tudo bem, tens as costas protegidas. Se és independente, se não estás calada e tens memória das coisas e das pessoas… estás tramada. Será sempre mais fácil dizer mal do que bem. Sabes o que penso hoje, trabalhando há 21 anos? Vozes de burro não chegam ao céu. Faço o melhor que posso e sei, o que, parece-me, é mais do que a maioria consegue. Na verdade, Rita, as pessoas que me conhecem bem sabem que me estou nas tintas. Num país onde todos têm uma opinião sobre tudo, eu não quero nem saber. Se gostam de mim, do meu trabalho, melhor. Se não for o caso, lamento, não sei quem são. A minha mãe passa a vida a ensinar-me que o melhor de tudo é viver sem expectativas. Ainda estou a aprender, mas vou lá chegar.
– E depois de sermos felizes, o que nos espera?
– Tudo, como é óbvio.
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