A propósito do seu novo livro, Maníacos de Qualidade, em que ‘sentou’ no seu divã de psicóloga personalidades já mortas, como Fernando Pessoa, o marquês de Pombal ou D. Maria I, marcámos encontro com Joana Amaral Dias, que ficou conhecida como a deputada ‘giraça’ e contestatária do Bloco de Esquerda. Apesar de ter mostrado algumas reservas no que diz respeito a falar sobre o seu lado mais privado, Joana baixou por vezes a ‘guarda’ e recordou momentos da sua adolescência vivida em Coimbra, falou dos pais, os psiquiatras Carlos Amaral Dias e Teresa Nunes Vicente, contou como não se deixou intimidar nos seus tempos de deputada e falou do seu único filho, Vicente, de 14 anos, que teve quando ainda estava a estudar Psicologia, em Lisboa.
– A que pessoas da sociedade actual gostaria de traçar o perfil psicológico?
Joana Amaral Dias – Sinceramente, a nenhuma, nem penso nisso.
– Nem nos tempos em que foi deputada do BE conheceu alguém que lhe despertasse a vontade de o ‘analisar’?
– Não. Aliás, mesmo para protecção da minha própria saúde mental… O que seria estar sempre a pensar em termos de perfil psicológico, ou psicopatológico, sobre as pessoas com quem lido diariamente! Isso era dar em louca, certamente.
– A Joana também tem o seu ‘quê’ de loucura, certo?
– Acho que todos temos. Costuma-se dizer que de médico e de louco, todos temos um pouco. Acho que se a loucura for entendida como um exercício de liberdade individual – e não no sentido de sofrimento, de empobrecimento mental -, é saudável. A psicologia clínica vai no sentido de permitir o acto de loucura saudável, da pessoa poder decidir o que é ou não bom para si. Em relação a essa psicologia, tenho tudo a favor. Aliás, isso enquadra-se, no meu caso particular, na postura política que eu defendo também, em que cada um deve poder fazer as suas opções, quando não colidem com os demais.
– E já fez muitas loucuras saudáveis?
– Já tenho a minha conta. Lembro-me de uma muito gira. Quando era adolescente, tinha regras e horas de entrada e saída em casa. Nós morávamos numa vivenda em Coimbra e o meu quarto era no primeiro andar e o consultório dos meus pais na sub-cave… Então, quando tinha 14 anos, numa noite em que estava proibida de sair, saltei pela janela. Coisa que fazia com alguma frequência, portanto esse não era o problema! Primeiro, mandava os sapatos e depois saltava. O problema foi que o meu pai estava a fazer consulta nessa noite e o paciente, que estava virado para a janela, disse-lhe: “Olhe, vi uns sapatos a caírem.” E o meu pai tentou continuar a consulta de forma serena. Mas a seguir o senhor disse-lhe: “Acho que vi a sua filha passar pela janela.” Ainda assim, o meu pai tentou continuar a consulta de uma forma tranquila, mas, no final, foi verificar. Ficou na dúvida se o paciente tinha ou não razão. Depois, obviamente, tinha o meu pai à espera quando cheguei…
– Parece ter sido uma adolescente um pouco rebelde. Deve ter dado muitas dores de cabeça aos seus pais…
– Algumas. Por acaso, tenho a sorte de ter uns pais muito liberais, embora não me deixassem sair todas as noites [risos]. Portanto, tinha uma margem grande de flexibilidade. Fiz os meus disparates, é verdade. Sempre fui muito reivindicativa, mas, em parte, também foi o que eles me ensinaram. Os meus pais estiveram ligados à crise estudantil de 1969, combateram activamente o fascismo, ambos foram mandados prender pela PIDE… Portanto, também não podiam refilar muito comigo, já tinham dado o seu exemplo para a conta. Sempre me lembro de mim assim, contestatária, a poder questionar as regras ou aquilo que me era apresentado como feito.
– Uma vez que os seus pais são psicanalistas, pediu-lhes ajuda para escrever o livro?
– Troquei mais impressões com a minha mãe do que com o meu pai. Quer eu, quer os meus pais somos pessoas bastante ocupadas e preferimos preencher o tempo que temos em família com coisas que não tenham que ver com trabalho, de preferência nem com política nem com ‘psis’. Senão, era a loucura! Não quer dizer que não se troque uma impressão ou se peça uma opinião, mas não de forma sistemática.
– A política é um mundo maioritariamente constituído por homens. Sentiu que teve que trabalhar o dobro para se fazer respeitar?
– Nunca me ponho nessa posição de vítima. Tive muitas desvantagens por ser mulher, mas também tive vantagens. E muita sorte, fruto de uma determinada condição socio-económica. Em casa dos meus pais havia todos os livros possíveis e imaginários, nunca faltou nada, portanto, não me revejo nessa vitimização. Acho que a vitimização, muitas vezes, tira-nos determinadas potencialidades e capacidades, em vez de nos revestir da força e da vontade de poder mudar.
– E nunca se sentiu ofendida ou diminuída por se referirem a si como a deputada ‘giraça’?
– Não. Acho que isso é uma forma de tentar diminuir as pessoas, particularmente as mulheres, de as acantonar ou como donas de casa ou como objectos de desejo sexual, como se as mulheres fossem assim, preto ou branco. Os cães ladram e a caravana passa… Mas, por exemplo, no dia em que saí da Assembleia da República, quando o presidente leu o meu nome, houve deputados nas mais variadas bancadas a fazer ‘uh, uh, uh’, que era uma coisa que eu já não ouvia desde o liceu. Na altura, fiquei um bocadinho estupefacta. Mas enquadro isso como mudanças sociais que são urgentes e mais profundas. Isto é apenas a ponta do iceberg, porque há mulheres que sofrem muito mais.
– É formada em psicologia, dá aulas, é comentadora de política e de cinema… como concilia tudo isto com o papel de mãe?
– Isto consegue-se com um suporte familiar e social sólido, que eu, felizmente, tenho. Isto não é só mérito meu, mas também das pessoas que me rodeiam, dos meus amigos, da minha família, das pessoas com quem trabalho… Cavaleiros andantes solitários que conseguem conciliar várias coisas sem ajuda, haverá poucos, e não é o meu caso. E depois, é as pessoas gostarem daquilo que fazem, terem essa pica, essas ganas de se envolverem e empenharem. E, de uma forma geral, sou uma privilegiada, por fazer as coisas de que gosto e que escolhi. Portanto, não me posso queixar.
– Mas consegue ter tempo para o seu filho?
– Consigo. E ai dele que se queixe! Aliás, ele queixa-se é do contrário. Ele diz-me: “Mãe melga, o que é que queres? Sai daqui! Porque é que me estás a ligar?” Temos uma relação muito boa e aberta. O facto de termos pouca diferença de idades ajuda e pode facilitar algumas coisas, mas o termos uma relação aberta tem mais que ver com uma determinada predisposição.
– E como é que o Vicente lida com a faceta pública da mãe?
– Isso, às vezes, gera dificuldades, porque nem sempre é fácil lidar com o facto de a mãe não ser só dele. E, depois, se há comentários na escola, ou algo do género, isso obriga-o a uma determinada reacção e é preciso saber reagir a isso. E eu acho que o Vicente tem vindo a aprender a lidar com isso. Mas também é um assunto de que falamos. Às vezes ele não gosta de certas coisas, como, por exemplo, quando fiz uma campanha para a TSF em que andava uma fotografia minha na parte de trás dos autocarros. Ele aí não gostou nada e achou que era demasiado público. Mas há outras alturas em que tem muito orgulho da mãe. Quando tive o Vicente ainda estava na faculdade, era aluna universitária, portanto ele acompanhou quase todo o meu trajecto profissional, logo, conhece bem os altos e baixos, as dificuldades… Também partilha isso comigo, o que é muito bom.
Joana Amaral Dias abre parte do seu universo privado
A psicóloga, de 35 anos, recorda a adolescência, fala do seu papel na política e da relação com o filho, Vicente, de 14 anos.