Conheci o
Alfredo Hervías e Mendizábal muito antes de o conhecer… Passo a explicar. Vários anos antes de nos encontrarmos pela primeira vez cara a cara (a expressão até fica bem, pois esse encontro foi na redação da CARAS), e bem longe de imaginar que um dia manteríamos uma relação profissional que me atrevo a considerar que passou para o nível da amizade – o Alfredo deu-me várias provas nesse sentido e eu espero ter conseguido dar-lhas também -, já eu era admiradora da forma despretensiosa como aquele espanhol com um nome pomposo fazia crítica gastronómica (e dava receitas) n’
O Independente, a primeira publicação portuguesa para onde escreveu este madrileno que, por questões emocionais, se auto exilou no nosso país no início dos anos 90.
Por essa altura,
O Independente tinha vários e bons motivos para ser imperdível semana após semana, e a coluna do Alfredo, intitulada
Coração, Cabeça e Estômago, era, sem dúvida, um deles. Porque os textos deste apreciador da boa mesa e dos bons néctares que ela não dispensa (e também um excelente cozinheiro) falavam diretamente à imaginação do nosso olfato e das nossas papilas gustativas.
A página do Alfredo tinha ainda o mérito de ser um prazer para os olhos, pois, ao grafismo, então bastante inovador, do "Indy", juntava-se o facto de ser ilustrada com excelentes imagens a preto e branco – muitas ao estilo retrato de família da equipa de profissionais do restaurante, vestidos com as suas roupas de trabalho – da autoria do seu amigo
Javier Díaz, fotógrafo basco, também radicado em Portugal, com o qual Alfredo trabalhou em dupla durante muitos anos, nomeadamente para a CARAS.
Em 1997, vi pela primeira vez o rosto redondo e simpático do autor das tais críticas. E descobri um eterno menino grande, a quem as várias armadilhas da vida – e eu só soube de algumas, apesar de ele me ter dado a honra de ser sua confidente em duas ou três ocasiões – nunca tirou o sorriso generoso e a pureza de uma certa inocência.
Essa inocência, os seus modos de
gentleman, um sentido de humor inteligente, mas deliciosamente ingénuo, uma noção de estética apurada, que se refletia na sua paixão pelo belo em todas as suas manifestações – assumia-se um melómano compulsivo e arrecadou uma considerável coleção de arte – e num estilo de vestir muito próprio, e a forma quase pudica com que se empenhava em não ser pesado ou incómodo para os outros (também isso revelava o seu lado de esteta) faziam do Alfredo uma pessoa como já há poucas. Ou nenhumas.
Durante os anos em que o Alfredo escreveu para a CARAS – na sua maioria, entrevistas a figuras ligadas à enologia, à gastronomia (por exemplo, vários grandes
chefs de cozinha internacionais com estrelas Michelin) e ao turismo, traduzidas do espanhol pela então sua mulher,
Mónica Avides Moreira -, editei muitos dos seus textos. Isso proporcionou, confesso, que o Alfredo aturasse bastantes vezes o meu mau feitio. Fê-lo sempre com uma calma, uma paciência e uma boa educação que ainda hoje me espantam. E, com essa sua bonomia, saiu sempre por cima, claro está!
Em 2006, meses depois de publicar o seu primeiro romance (no domínio da não-ficção já escrevera vários livros sobre vinhos e restaurantes),
Madrid me Mata, muito inspirado na sua própria vivência da Movida madrilena (ele que nos anos 80 teve um restaurante na capital espanhola, o El Café, que era frequentado pelos artistas e intelectuais na moda), disse-me que se ia embora para o Brasil, decidido a dedicar-se apenas à escrita ficcional.
Tive pena de ver partir uma pessoa que já fazia parte da minha vida. Tive pena, também, por perceber que o exílio a que o Alfredo se condenara ainda não tinha terminado. A pena passou-me, quando, dois anos depois, ele me apareceu de surpresa na redação e o vi radioso e feliz com a nova existência que construíra no Brasil.
Há uns meses, o Facebook aproximou-nos um bocadinho mais. E o Alfredo sugeriu-me voltar a fazer entrevistas para a CARAS, lá, no seu novo país. Chegou mesmo a propor nomes. Não agilizei o processo, convencida de que tempo não nos faltaria para o concretizar. Da mesma forma que não rejeitei o convite que me fez para o visitar em Trancoso, na Bahia, onde possuía um turismo, mas também não me apressei a aceitá-lo. Agora já é tarde. Há dois dias, também na CARAS, soube que o coração do Alfredo parou. Tinha 47 anos.