Nenhum português o desconhece na rua, mas lancemos-lhe um olhar novo: chama-se
António Victorino Goulart de Medeiros e Almeida, nasceu em Lisboa a 21 de Maio de 1940, e é pianista, compositor, maestro, escritor, dramaturgo e realizador de cinema. Gravita sobre ele – e sobre toda a família, dir-se-ia – a estrela cintilante da Arte, do palco, do golpe de asa. É filho homónimo de um advogado e de uma mãe de origem açoriana (Faial), que foi, durante um breve período, cantora lírica. O seu avô paterno,
Achilles d’Almeida, era, embora amador, excelente músico. As suas filhas mais velhas,
Maria e
Inês de Medeiros, são actrizes e realizadoras com carreira internacional reconhecida, e a sua filha mais nova,
Ana Victorino d’Almeida, filha do seu actual casamento com
Sybil Harlé, é violinista e compositora. É avô de cinco netos.
Começou os seus estudos musicais aos seis anos e concluiu o curso superior de piano com a classificação eloquente de 19 valores, que lhe valeu a atribuição de uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, aos 20 anos, para estudar na Áustria, onde se licenciou em Composição com a classificação máxima e um prémio do Ministério da Cultura austríaco pelo "melhor aluno finalista" – não é qualquer um.
Além de dominar a escala musical, a esta escala homérica, honra como poucos o alfabeto: publicou oito livros com múltiplas reedições. Depois do sucesso de
Coca-Cola Killer, acaba de lançar
Tubarão 2000, um livro que classifica como
"uma saga intemporal que tem por cenário o vasto submundo da negociata política portuguesa". Travou uma conversa infrene com
Rita Ferro, no Jardim das Amoreiras, recusando-se, apesar do calor, a posar sem casaco:
"Não seria eu", explicou.
– Como explica toda esta prodigalidade artística na família?
António Victorino d’Almeida – Bem… A família
Bach conta com 32 nomes na História da Música, recorde seguramente difícil de igualar! Mas há seguramente um factor educacional que determina o facto concreto de vários membros de uma mesma família se dedicarem com êxito profissional a actividades afins. No meu caso, têm sido efectivamente actividades relacionadas com as Artes e as Letras, algo que talvez salte mais à vista, embora se trate de profissões iguais às outras.
– E quanto à multiplicidade de talentos com que nasceu? Ou melhor: como é possível ainda não estar esquizofrénico?
– Ninguém diga que de uma certa esquizofrenia não sofrerá… Mas, deixando de parte os casos mais graves, penso que existe em mim uma concreta tendência para associar diversas actividades num todo que sou eu mesmo.. Trata-se de um fenómeno de complementaridade que nada tem de dispersivo, exigindo, muito pelo contrário, um concreto espírito de entrega, autêntico gosto pelo meu trabalho – e também uma mentalidade naturalmente organizada… Quando faço música, sou apenas músico. Quando escrevo, sou escritor. Quando trabalho com imagens, seja no cinema ou na televisão, sou realizador… Além disso, tudo aquilo que faço visa transmitir – ou comunicar – uma mensagem, mas não aceito a ideia de que exista uma profissão chamada "comunicador", do mesmo modo que me custa a encarar a expressão "pensador" para definir uma actividade profissional… Pensar e comunicar não são profissões!
– Se um neto seu, pequenino, lhe perguntasse:
"Avô, o que é a música?", que lhe responderia?
– Diria que é uma arte extraordinariamente bela e enriquecedora do espírito; é, por outro lado, uma profissão normalíssima; mas já não poderia garantir, pelo menos em Portugal, que seja um bom emprego…
– E
"o que é a Arte, avô"?
– A Arte é a forma mais eficaz de transmitirmos aos outros – e até a nós mesmos – os sentimentos que nos vão na alma…
– O maestro é um ser eminentemente solar. Tem luas?
– A vida desenrola-se na permanente alternância entre o sol e a sombra, entre a noite e o dia, mas isso não implica necessariamente a existência de "lados negros"… Tenho, é óbvio, os meus momentos mais sombrios e outros que são mais iluminados, mas não creio em que isso constitua um verdadeiro problema, pois é só uma questão de tempo – e, às vezes, de paciência – esperar pelo regresso da luz.
– Disseram-me que tem manias. Além de nunca tirar o casaco, viaja arrastando consigo, literalmente, toneladas de livros…
– Bom, quando se viaja muito, nomeadamente por motivos profissionais, como é o meu caso, viajar sem livros seria também viver muito tempo sem livros… E eu gosto tanto da privacidade como detesto a solidão!
– [risos] Falando agora da escrita, terreno menos dado às improvisações que tanto o desafiam na música: quem o incentivou?
– É para mim indiscutível que a pessoa mais responsável pelo facto de eu ter começado a escrever em termos de escrita literária foi o meu professor
Jorge Borges de Macedo. Um pouco mais tarde, um outro professor – o
António José Saraiva – ensinou-me a ler melhor, e é evidente que isso também teve repercussões no meu crescente interesse pela escrita. De facto, tive a sorte de receber lições de dois professores geniais…
– Quer falar-nos um pouco da sua escrita?
– Confesso que me sinto muito mais à vontade a produzir do que a falar sobre o que produzi… É óbvio que todos os meus livros – mesmo aqueles que sejam acerca de história da música, por exemplo – dão uma especial atenção ao lado humano das figuras. Escrevo sempre sobre a vida ou sobre a minha maneira de encarar a vida e evito temáticas excessivamente abstractas. Mas, na minha música, faço ou tento fazer exactamente o mesmo… Ou seja: mais importante do que relatar um acontecimento ou contar uma história, será sempre, para mim, explicar o porquê daquilo que acontece às personagens, tanto faz que sejam homens, bichos, coisas ou até casas… O mesmo se passa connosco e com os condicionalismos que rodeiam a nossa existência e determinam o nosso carácter – ou, quando morremos, irão constituir a memória… De qualquer modo, há um tema subjacente a tudo aquilo que escrevo, e que é a defesa intransigente do direito a uma existência dentro de inalienáveis parâmetros de dignidade. Mais do que a própria liberdade – sem dúvida importantíssima -, eu valorizo a dignidade como sendo o direito mais sagrado de qualquer vida.
– No seu caso, o músico devora o escritor, o que é chato, pois a sua escrita, prodigiosa, está ao mesmo nível! Convenhamos que raro é o público com equidade para reconhecer, no mesmo indivíduo, genialidade em duas artes magnas
como a literatura e a música. Um pseudónimo resolveria se não fosse já famoso… – O nosso próprio nome é sempre um pseudónimo de ‘eu’, pelo que não saberia dizer qual desses nomes seria o mais autêntico. Assim, sou sempre… eu!
– Vamos imaginar que uma fada dotou as suas filhas à nascença. Que dom deu a cada uma?
– Terá dado a todas elas o dom de serem pessoas fundamentalmente sérias e grandes profissionais. Mas, para ser sincero, acho que o meu papel nesse campo não foi inferior ao da fada…
– [risos] Toda a sua figura corresponde ao imaginário que a burguesia tem do artista: o desalinho, o desprezo pelas convenções, o discurso aceso e desregrado, o próprio cabelo indómito…
– Desalinho: na roupa, tenho de o confessar…Desprezo pelas convenções: sim, mas só pelas convenções que não passem disso mesmo. Ou seja, pelas convenções que não sejam ditadas por uma ideia ou por um sentimento superior. Cabelo: já os conheço pelo nome e vejo partir com saudade cada um que o vento leva…
– Que lhe falta fazer na vida?
– Para já, inventariar o que ainda me falta fazer para considerar que cumpri minimamente bem aquilo de que fui provavelmente incumbido no dia em que vim parar a este mundo com determinadas capacidades… De facto, não acredito no acaso e sinto que todos temos uma determinada missão a cumprir. Feito esse inventário, penso que ainda me encontro muito longe de aceitar – e, menos ainda, de desejar – qualquer tipo de reforma no trabalho. O mesmo não digo de uma reforma pecuniária tranquilizadora, que é seguramente uma coisa que me falta obter…