Trata-se da estreia da poesia nesta rubrica, pelo que a escolha foi ponderada. Chama-se Henrique Jorge Segurado Pavão, mas como poeta é conhecido como
Henrique Segurado. A sua personalidade e obra são encantatórias. Casado há 54 anos com
Maria da Graça Costa Segurado Pavão (conhecida pelo
petit nom de Migacho com que baptizou as lojas de roupa feminina que tanto furor fizeram a partir dos anos 60), tem 80 anos, quatro filhas, 11 netos e um bisneto. Foi administrador dos jornais
O Século e
O Jornal e fundador das livrarias Castil, em Lisboa, e AZ, em Lisboa e Porto. Autor de três livros de poemas (
Emigrantes do Céu, 1953,
Asa de Mosca, 1960, e
Ressentimento dum Ocidental, 1970), encontra-se representado em inúmeras antologias –
David Mourão-Ferreira foi um dos que se debruçaram sobre a sua obra. Escreve sem tréguas desde os 22 anos, e
Joana Morais Varela, ligada durante duas décadas à revista
Colóquio/Letras, acaba de editar-lhe uma selecção da poesia que escreveu entre 1969 e 1989, num volume soberbo, com desenhos de
Rui Sanches, intitulado
Almocreve das Palavras. Recebeu-nos em casa, em Belém, ao lado da mulher, com um sorriso e uma amabilidade tão bonitos como os versos e redondilhas que, sacados ao livro, glosarão esta entrevista. Respeitemos, pois, a hierarquia: vai falar um poeta!
– "O espaço é todo feito de distância, de abismos, movimentos, incerteza"?
– Vejo que aquilo que me pergunta traz à superfície um poema meu,
Átomo. Não será precisamente isto o Espaço? Pense só que, em 1975, o Homem enviou da Terra uma mensagem, acusando a sua existência neste ponto do Universo, para o enxame de estrelas
– Messier L 333. A resposta demorará 40.000 anos a chegar até nós. Quem cá estará nessa altura? Seja como for, deve-se aguardar por ela como quando se espera a resposta a uma carta com aviso de recepção.
– "O que era a multidão sem ter anónimos, embrenhados na própria solidão"?
– A resposta que vou dar-lhe também me faz recorrer a esse mesmo poema,
Átomo, cujos dois últimos versos dizem:
"A vida é toda feita de binómios / Tanta vez sem nenhuma solução!". Dizer que os anónimos são o que engrossa o caudal das multidões no seu desejo de não estarem sós parece-me ser um binómio cuja incógnita somos nós mesmos.
– "Depois de si o seu coração ainda irá bater"?
– Por pura ironia, poder-lhe-ia dizer que se eu doar o meu coração para fins humanitários, ele, transplantado, poderá continuar a bater noutro peito. Mas dando a este agradável diálogo o tom sério de que é merecedor, sempre direi que como tenho semeado gente e esta, por sua vez, já tem semeado alguma coisa, penso que o meu coração baterá por mim na noite do grande silêncio que se seguirá à minha vida.
– "Esse sorriso é espartilho que não o deixa chorar"?
– Tanta vez que o choro toma a vez que o sorriso devia ter! E tanta vez o sorriso disfarça o choro… O sorriso e o choro são as duas faces da moeda, inseparáveis; são, afinal, o que a vida nos dá por troco.
– Que sorriso o
"leva às Descobertas"?
– Mais uma vez reparo que recorreu a uma das poesias que o
Almocreve das Palavras espalhou. E, para mim, já é uma satisfação descobrir que há uma pessoa que tanto se embrenhou nos meus versos e deles soube tirar proveito, como trabalhando uma matéria-prima a que soube dar figura. Esta é uma das
Descobertas que recompensam o meu sorriso. Nada melhor para um poeta o sentir que não está a falar sozinho!
– "Tudo nos é limitado neste nosso paraíso"?
– Como o
Fernando Pessoa tão bem sabia,
"o poeta é um fingidor". Seja-me por isso permitido dizer que ao contrário do que escrevo no poema
A caminho de Pompeia, nem
"tudo nos é limitado / Neste nosso paraíso", basta pensar na maneira como a poesia destrói todos os limites que possa encontrar na sua imparável correria.
– "Se a nossa vista se alarga vai morrer no infinito"?
– Isso nunca aconteceria, pois a inimaginável distância que tinha de percorrer obrigava a um fechar de olhos imediato e a afagar o que tivéssemos à mão como procurando uma âncora que nos prendesse ao pouco espaço que nos pertence por direito. Como vê, o ente racional continua a contradizer o poeta…
– "Desperdiçou carícias"?
– Julgo que devemos ser comedidos nesse campo. No deserto, por vezes, uma gota de água vale uma vida: penso que uma carícia nos mata sempre a sede e que, portanto, deve ser guardada para ocasiões especiais. Ela pode traduzir-se às vezes num simples cruzar de olhares com uma mulher, nas saudades que nos ficam do ajeitar dos cabelos pelas mãos dos nossos pais ou, mais tarde, no agradecer inconfundível dos nossos filhos quando nos fazem uma festa sem ser em troco de qualquer rebuçado. Portanto, se desperdicei carícias ao longo da vida ou foi por distracção ou por vingança mesquinha.
– "Há gaivotas confundidas por entre bandos de pombas"?
– Vejo com muito gosto que continua a palmilhar o terreno dos meus poemas, neste caso, o de
Os Vidreiros de Murano. Tal como nesta ilha, nas cidades marítimas por vezes as gaivotas e as pombas misturam-se, sem que, para mim, isso constitua qualquer espécie de problema. Talvez a Rita tenha pensado que nos meus versos atribuiria uma simbologia especial a cada uma das aves: se assim for, lamento desapontá-la…
– "Se Deus nos deu a comida e o Diabo o condimento, do outro lado da vida que nos serve de alimento"?
– Pode ser o
"pão que o Diabo amassou", para uns tantos. Para uma grande maioria, o
"pão-nosso de cada dia" que continua do outro lado. Mas há os descrentes, que só esperam encontrar a fome.
– "No ponto onde a noite acaba pode nascer uma rosa"?
– Não será o vermelho da madrugada uma rubra rosa aberta no infinito? Cada um de nós fará sempre na vida uma viagem ao fim da noite na procura de uma rosa para a grande lapela que é o nosso próprio corpo. No entanto, e lembrando os outros dois versos da quadra que cita (
"No ponto onde a noite acaba / Pode nascer uma rosa / Ou pode tecer a baba / Uma aranha venenosa"), forçosamente as madrugadas não nos trazem sempre as cores da esperança, pois basta uma nuvem negra para a noite retomar a sua cor habitual.
– "De palavras é feita a sua vida, como as dunas que preenchem o deserto"?
– Sim, de palavras é feita a minha vida: sou um almocreve de palavras que não teme as tempestades de areia por saber que haverá sempre uma duna que me possa acolher no meio de uma ventania inesperada.
– "Quer ir onde os rios não conseguirem"?
– Contento-me com a força da minha própria corrente, pois sei que, quando a poesia quiser, serei afluente natural de qualquer rio ao ponto de me confundir com ele.
– "Qual a chave da charada onde a Fé tão bem se esconde"?
– A Fé é uma porta fechada pelo lado de dentro e só quem a conseguir arrombar encontrará a solução da charada como prémio desse acaso.
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico