Em 2002,
Ingrid Betancourt, na altura candidata à Presidência da Colômbia, foi capturada pelas FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e levada para o interior da selva, onde permaneceu em cativeiro durante seis anos e meio. Em 2008, foi libertada pelo exército colombiano, numa operação sem violência durante a qual foram ainda resgatados outros 15 reféns. Ingrid passou seis anos e meio privada de liberdade, vítima de torturas, maus tratos e em condições sub-humanas. Mais de dois anos após a libertação, lança em Portugal
Até o Silêncio tem um Fim, livro no qual relata o que viveu desde o dia da captura. Aos 50 anos, Ingrid conserva uma beleza única. Mulher de traços simples, quase sempre com um sorriso tímido, não conseguiu evitar algumas lágrimas numa curta, mas intensa entrevista.
– Ao escrever este livro acabou por reviver todo o drama. Foi complicado?
Ingrid Betancourt – Sim, cada vez que re-cordo certos momentos ou ouço falar de algo relacionado sofro. A memória traz-nos imagens, sentimentos e emoções… Foi duro, mas também foi importante, porque muita gente sabia que eu tinha sofrido, mas tinha uma visão muito abstrata.
– Que parte lhe custou mais recordar?
– O primeiro capítulo foi muito duro…
– Nesse capítulo fala da tentativa de evasão frustrada…
– Por isso. Porque foi uma frustração, porque foi um momento de confrontação física… enfim, foi muito desagradável.
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– Teve sentimentos contraditórios até em relação aos guerrilheiros. Ficou algum sentimento mais forte por alguém?
– Os sentimentos são sempre muito contraditórios, porque tão depressa estamos a sofrer imenso como de repente temos momentos de empatia com alguém. A pessoa que mais me marcou foi outro refém, o
Lucho, pela sua generosidade. E adoro o
Mark [também cativo], digamos que temos uma amizade um pouco diferente, porque acredito que provavelmente houve amor… é difícil dizê-lo, porque tudo se confundia naquelas circunstâncias. E porque não havia a possibilidade de mostrar o amor como queremos mostrar. Então aumentava a frustração…
– O que a ajudou a manter a sanidade durante todo esse tempo?
– As recordações de momentos felizes. As boas recordações que tinha dos meus filhos, dos meus pais. Posso dizer que foi o amor que me segurou, o amor pela minha família e pelas pessoas mais próximas. Isso e uma vontade enorme de voltar a vê-los a todos. A vontade de recuperar essa felicidade perdida.
– E depois a morte do seu pai quase a fez desistir…
– Saber da morte do meu pai foi o pior momento da minha vida, mais do que o sequestro. Senti uma dor muito forte, sobretudo por não poder estar perto dele.
– Muitas vezes, conseguiu ver ‘pessoas’ por detrás dos guerrilheiros e de homens que considerava cruéis pelos atos que praticavam…
– Sim, e recordo-me de cada um deles. Enquanto estamos a falar, passam pela minha cabeça as imagens de cada momento que vivi na selva. E, sinceramente, quero bem a todos aqueles guerrilheiros. Perdoei-lhes tudo, porque sei que o que me fizeram não foi nada de pessoal. Não tinham opção de vida… Não podem querer ser pilotos, médicos, professores… Só tinham duas opções: ou eram negociantes de cocaína ou guerrilheiros. As raparigas, ou eram prostitutas ou guerrilheiras. Não os posso culpar.
– Como foi o dia da sua libertação?
– Incrível! Foi um momento de pura adrenalina. Numa questão de segundos, passei da prisão à liberdade. No helicóptero, íamos com os dois chefes guerrilheiros e eram eles os prisioneiros! Incrível é que, quando os vi na condição de prisioneiros, tive vontade de os ajudar. Porque sabia o que estavam a sentir. A dor e o horror por que estavam a passar.
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– Acabou por criar uma segunda família na selva. Foi fácil voltar à realidade?
– Todos com quem estive na selva continuam a fazer parte da minha família. Mas foi muito interessante e apaixonante o regresso à vida normal. Adorei recuperar o meu espaço. Estar com os meus filhos, que tinham mudado tanto… E ir, uma por uma, quebrando barreiras, voltando a ligar-me a à minha vida.
– Com o seu filho não foi tão fácil quebrar a barreira do tempo, da ausência…
– Sim, mas é normal que tenha sido assim. Ele não sabia bem quem eu era. Era muito novo quando fui capturada. E não poderíamos nunca voltar à relação que tínhamos. Eu não podia voltar a ser a mãe que o mandava lavar os dentes, arrumar o quarto ou coisas assim. Tinha-se tornado um homem que já não recebia ordens da mãe, que já vencera as suas batalhas, que já tinha formado o seu carácter… e um carácter maravilhoso. De início houve um certo desconforto entre nós.
– E conseguiram ultrapassar esse desconforto?
– Hoje em dia eu e os meus filhos somos muito próximos, temos uma grande intimidade. E é lindo, porque não é neutro, é uma interação muito sincera. Dizemos o que temos a dizer e estamos cada vez mais próximos. A coisa mais bonita que a vida me deu foram os dois filhos maravilhosos que tenho.
– Entretanto, o seu segundo marido iniciou uma batalha contra si, relativa ao divórcio e aos bens que possui…
– É muito triste…
– Os problemas que surgem agora, depois de tudo o que já passou, são sempre mais relativos, não?
– Não têm nenhuma importância! Mas é triste do ponto de vista humano… como pode fazer-me isto? Depois dos anos de sofrimento, de cativeiro, a única coisa que lhe interessa é o dinheiro. É triste, é muito triste mudar uma relação por dinheiro, mas enfim, a única coisa que desejo é que corra tudo bem na vida dele, que encontre a felicidade e que não faça mais danos.
– Diz que só agora começa a sentir-se realmente livre…
– Sim, o sentimento de voltar à normalidade. Porque, na verdade, ainda não voltei à normalidade. Não tenho casa, está tudo um pouco vazio, tenho apenas as minhas malas. Quero sentir que sou eu de novo e isso não é fácil.
– Acredita que reencontrará o amor?
– O amor é… um milagre. Outro milagre! Há que aprender a amar sempre, é uma conquista constante… Ainda não aconteceu, mas espero que aconteça.
– Percebe-se que ainda lhe é difícil falar sobre o que passou…
– Não consigo esquecer o que passei na selva, mas não quero ficar presa a essa desculpa de estar traumatizada. Não. Quero muito ser feliz.
*Este texto foi escrito nos termos do novo acordo ortográfico.