É a quem devemos, só e mais nada, a excelência de um serviço público de televisão durante 21 anos consecutivos, na RTP2, e o prestígio que este canal adquiriu no país e no estrangeiro, de forma irreversível. Quem não se lembra, por exemplo, dos
Artes & Letras dedicados às figuras de maior relevo das artes, da sociedade e da política, graças aos quais ficámos a conhecer todos os grandes vultos do século XX? Quem esqueceu as lendárias transmissões de peças, concertos e bailados que contemplavam todos os que não tinham possibilidades de os apreciar de outro modo? Num mundo de memória curta, como o nosso, convém não deslembrar os que, pouco vocacionados para o mediatismo e para o estrelato, nos asseguraram décadas de qualidade redentora e resistência estóica à ameaça do lixo televisivo que haveria de se instalar para sempre na nossa TV, a reboque da poluição americana. Tudo isto tem um nome e uma assinatura:
Rui Esteves.Nascido no Porto, Rui Esteves faz os estudos primários em Angola, frequenta o Helderberg College (Cape Town, África do Sul) e tira o Curso do Instituto de Alta Cultura, em Lisboa. Diplomado pelo Place Rotham (Londres), em Música e Drama, e licenciado em Linguística e Literaturas Ocidentais pela Rupin University (Israel), é admitido na RTP em 1979, como produtor executivo, para, logo em 1981, ficar responsável pelo departamento de Música e Eruditos.
Em 1990 passa a dirigir o Departamento de Artes e Documentais, assumindo estas funções até final de 2002. Foi crítico no
Jornal de Letras e colaborador do
Expresso. É detentor de inúmeros prémios internacionais, incluindo um Emmy pela sua produção criativa em
September Songs, com
Teresa Stratas,
Lou Reed e
Elvis Costello. Foi membro de vários júris internacionais e eleito três vezes presidente do júri do Prix Itália. Foi distinguido com o Hoechestkunstpreis da cidade de Berlim, bem como o Grand Prix da Ópera de Lyon, em 1997. É co-fundador do Conselho Português da Música. Em 1994, estreia-se como realizador, e, com o documentário sobre o compositor
Vasco Martins (
Danças de Câncer), ganha o Prémio do Festival de Valladolid e a nomeação para os Globos de Ouro da CARAS e da SIC. Em 2006, realiza para a RTP2
O Ouro do Reno e, em 2008,
Todi: A Segunda Morte de Luísa Aguiar. Em 2010, completa o documentário
O Crepúsculo dos Deuses. Como se não bastasse, foi administrador do Teatro Nacional de São Carlos e ainda hoje a casa lhe faz justiça. É tradutor de várias obras literárias, colaborador regular do São Carlos e, recentemente, do Centro de Arte Moderna.Privou com
Maria Callas, entre outras vedetas de que também nos falou. Recebeu-nos na sua magnífica casa das Amoreiras, onde, aqui e ali, se podem ver provas do seu talento oculto: a pintura.
– Comece por nos falar da Callas. Onde a conheceu? Qual a memória mais forte que guarda dela?
Rui Esteves – Conheci-a em Paris, no Outono de 1968. Bati à porta e a empregada pediu-me para esperar no patamar. Encharcado e com um modesto ramo de rosas, esperei sem convicção. Mas acabei por ser recebido e falar com ela quase uma hora. Falámos do São Carlos e da Primavera que fazia quando cá cantou, em 1958. A memória mais presente, mesmo quando ouço a sua voz no apogeu, é a de um par de olhos negros, enormes e tristíssimos como os de um pássaro sem canto e sem amor.
– A televisão está hoje muito diferente: algumas comparações inevitáveis?
– Pertenci a uma forma de estar e de trabalhar numa televisão que já não existe. Durante três anos, o Canal 2 foi eleito pela BBC World o primeiro canal cultural europeu. Éramos respeitados pelas cadeias estrangeiras congéneres. Não estamos a falar de cultura pura e dura, pois essa pode ser chata e inútil. Variedades, concursos ou futebol podem tornar-se grandes veículos culturais se tiverem oportunidade e bom gosto. Éramos uma equipa coesa, "comandada" pelo único director de programas a quem presto total homenagem:
José Eduardo Moniz. Homem de visão, rigor e entusiasmo contagiantes. ‘
Après Moniz, le déluge’: só directores de programas politizados, jornalistas arrogantes e alfabetizados com cuspo, sem educação ou gosto. Em 2002, assinei a rescisão e parti sem azedumes ou conflitos interiores. Quando, anos mais tarde, regressei à RTP, a convite do realizador independente
Fernando Ávila, deparei-me com uma espécie de central nuclear desactivada, sem criativos, e habitada por uma multidão que parecia ter saído dos gavetões de um cemitério para ir trabalhar nessa profissão assassina mas fascinante que é a televisão.
– Conheceu gente lendária, sobretudo no mundo das Artes. Quem, além da Callas, lhe ficou na memória. E porquê?
– Trabalhei com todo o tipo de pessoas e, curiosamente, as que pensavam ser génios foram as que mais dores de cabeça me deram. Lembro-me de uma noite, num pequeno restaurante nos arredores de Cardiff, estar a jantar com
Joan Sutherland,
Alfredo Kraus,
Rita Gorr,
Marylin Horne,
Nicolai Gedda e
Renata Tebaldi. Feitas as contas, e ressalvando uma ou outra ausência, estava cercado pela nata do canto lírico da segunda metade do século XX. E como é que essa gente verdadeiramente "lendária" se portou? Entre copos e gargalhadas, riram-se perdidamente dos seus maiores fracassos. E quando
Paul Tortelier, depois de tocar à porta fechada uma suite para violoncelo de
Bach, veio ter comigo e me perguntou se eu queria que repetisse? Ou quando
Gore Vidal, após uma brilhante entrevista, me confidenciou que só dissera banalidades? E o canto e eloquência de
Teresa Stratas, a Salomé do século XX, que, soube há dias, é agora freira clarissa em clausura? Esses, sim, são os génios…
– O que o motivou ser realizador de documentários? Que dificuldades e alegrias sentiu?
– Tive um mestre na RTP chamado
Oliveira e Costa, um genuíno esteta. A RTP deve-lhe muitíssimo, mas hoje ninguém o recorda. Trabalhámos anos a fio, e um dia disse-me que deveria tentar a realização. Respondi-lhe que não me sentia motivado, mas intimamente não me sabia pronto. Até que parti para a China e realizei dois documentários; caloiro na matéria, tive a ajuda silenciosa de
Jorge Meireles, um grande
cameraman! Repetimos mais tarde a proeza com
Danças de Câncer; porém, a maior alegria foi ter a coragem de mostrar as
Danças a Oliveira e Costa, que me felicitou, comovido. Seguiram-se outros, e a última aventura – sim, porque é sempre uma aventura – foi
Todi, com
Laura Soveral, com belíssima imagem de
Albano Espírito Santo e texto sublime de
Maria João Seixas.
– É uma relação de poder?
– Será antes uma relação de aceitação. Longe vão os tempos dos artífices medievais que esperavam apenas a aceitação de Deus. Hoje criamos à espera da aprovação do outro, que nos é tangível ou mesmo distante. E se nos baterem palmas, tanto melhor!
– Quais as suas referências no cinema? Realizadores e actores?
– Realizadores:
Rossellini,
De Sica e
Visconti a qualquer hora do dia;
Cuckor a filmar mulheres e
Scorsese a filmar homens;
Almodóvar é uma aquisição tardia. Actores:
Brando,
Johnny Depp. Actrizes:
Meryl Streep e quase todas as saxónicas.
– Que filme faria?
– Gostaria de divagar, mas, sinceramente, nenhum. Falta-me o engenho e a arte.
– Que documentário está por fazer, sobre figuras portuguesas?
– Hoje o documental preferido pelos encomendadores tem que lidar com um certo esquerdismo já estafado, com uma miséria e marginalidade que pouco mais têm a acrescentar. E, enquanto produto final, dificilmente encontrará lugar nas estantes da memória futura. Mesmo assim, propus recentemente um documentário sobre a passagem por Lisboa de judeus ilustres durante a Segunda Guerra Mundial. De
Alma Mahler, de
Franz Werfel – que
Thomas Mann dizia ser o maior escritor alemão de sempre -, de
Heinrich Mann, de
Stephan Zweig e de tanta outra gente. A banda sonora seria
Quarteto para o Fim dos Tempos, obra maior de
Messiaen composta num campo de concentração e gravada por músicos portugueses. Olharam para mim e ficaram de pensar. Até hoje.
– Tinha com São Carlos um amor recíproco. Gostaria de voltar?
– Tinha e terei. Antes da RTP, foi a minha primeira casa. Entrei pela porta da Serpa Pinto quando tinha 17 anos. Ali estudei, fui assistente de cena, co-fundador de uma revista, vogal durante cinco anos e produtor para televisão nacional e estrangeira de mais de 30 óperas. Regressei a S. Carlos pela mão de
Paula Vilafanha, desta vez como colaborador nos programas de sala. É naquela casa que tenho o orgulho de conviver com alguns dos meus amigos mais indefectíveis. Só que aquela casa centenária tem sido sistematicamente mutilada pelo poder político. Quem vai para lá mandar, usa-a como trampolim para melhores cargos futuros e dirige-a sem conhecimento, com desamor, desrespeita e deita à rua carreiras de gente talentosíssima. Só recentemente
Paolo Pinamonti, com o seu profundo conhecimento de "teatro de ópera", soube trazer a São Carlos o lustro perdido, porém, acabou maltratado pela intriga política e pela pacovice nacional.
– Que lhe falta fazer?
– Hoje dou-me ao luxo de não precisar de trabalhar para viver, mas sim para sobreviver como entidade que gosta de pensar e agir, que tem de dar um propósito ao seu duche matinal. Falta-me compreender de uma vez por todas a teologia de
Moby Dick, o cripto-judaísmo de
Dom Quixote, nadar com golfinhos, convencer alguém de S. Carlos, da RTP ou da SEC a editar em DVD
O Anel do Nibelungo, visitar Santiago de Compostela, fazer uma derradeira tentativa para entender
Mahler e
Pessoa, convencer uma amiga querida de que
Senso, de Visconti, é obra-prima, coragem para escrever uma ficção e, sobretudo, para voltar a olhar para um certo sexto andar na Piazza Navona. Falta-me tudo! Como dizem hoje os políticos a torto e a direito,
"está tudo em cima da mesa"...
– Para quando uma exposição de pintura?
– Voltamos ao filme que nunca farei. Quanto mais olho os mestres, mais me considero um
sunday painter. Fico-me pela pintureca que ofereço aos amigos e todos ficamos felizes…