É novo, bonito e tem o
mundo nas mãos. Mas é muito mais do que isso e conhecê-lo foi um prazer
incomparável. Olha nos olhos, é simultaneamente fosfórico e bondoso, o discurso
é maduro e agradecido à vida e aos seus privilégios. Nasceu em Leiria a 14 de
Junho de 1973 e é um dos músicos, cantores e compositores portugueses mais
apreciados pelo público exigente. Foi membro da banda Silence 4, mas actua a
solo desde 2003. Além de escrever a maioria de suas obras, também é responsável
pelo design gráfico das capas dos seus álbuns e direcção de arte dos
seus videoclips. Entre 2004 e 2006, fez parte do projecto-tributo
Humanos. É porta-voz activo para a Associação Fonográfica Portuguesa sobre a
violação de direitos de autor. Queria ser fotógrafo e não músico, mas o êxito
foi tão grande logo na primeira incursão que foi difícil voltar atrás. É um
fenómeno: aprendeu música sozinho, experimentando instrumentos. Canta em
inglês porque as maiores referências foram anglo-saxónicas, mas já prometeu um
disco em português. Recebeu-nos na casa de chá da Lanidor, na Av. da Liberdade,
que frequenta regularmente. “Sou um bicho de cidade”, confessou-nos
sorrindo. “Gosto de me misturar com tudo isto.” E nós com ele. Vamos ouvi-lo.
– Ouvi dizer que estás na música por acidente – é verdade?
David Fonseca – Sim, nunca tive a ideia de fazer da música a minha
profissão. Queria seguir o ramo da fotografia e toda a minha vida académica foi
centrada nessa direcção. A música era um passatempo e não o desejo de uma vida
profissional, mas tudo se alterou com o sucesso gigantesco do álbum de estreia
dos Silence 4.
Uma vez no meio de toda essa agitação, percebi que era uma área que podia
agrupar muitas coisas que eu gostava e resolvi agarrá-la com determinação. E
ainda hoje considero que sou uma das pessoas mais sortudas do mundo por ter uma
profissão que me permite tanta liberdade e espaço criativo.
– Com que idade tocaste num instrumento pela primeira vez?
– Teria uns 8, 9 anos, quando tive aulas de piano e órgão durante dois anos.
Depois disso só voltei à música aos 18 anos, com a descoberta da guitarra a
liderar uma paixão fulminante pela ideia de fazer canções.
– E voltaste às aulas de música?
– Não. Tudo o que aprendi é fruto de horas, dias e semanas a experimentar
instrumentos e a tentar perceber como podia fazer com que eles fizessem soar
aquilo que imaginava. Sei tocar um bocadinho de todos, mas não sei tocar nenhum
muito bem.
– E a opção de só cantar em inglês? O inglês é uma espécie de esperanto da
música?
– Não foi tanto a linguagem universal do inglês que consolidou a ideia de
exprimir-me dessa forma, mas antes as influências de toda a música
anglo-saxónica que comandava (e continua a comandar) a gigantesca parte dos
meus dias. Nunca foi uma questão pertinente ou relevante até ter vendido muitos
discos, só aí começou a ser uma pergunta constante e alvo de críticas
sistemáticas, mas faço-o sobretudo porque é a minha maneira de expressar uma
certa forma de estar na música e de a construir criativamente. Mas, para que
conste, adoro cantar em português. E espero que um dia possa fazer um disco em
português da mesma forma natural e descomprometida com que fiz todos os outros
discos da minha vida.
– Tens o chamado ar cool – é genuíno ou fervilhas interiormente?
– Não faço ideia, sinto-me muito pouco cool no meu dia-a-dia. Não é uma
imagem que queira projectar ou que me faça perder tempo na minha vida, acredito
que o maior factor cool que se pode ter está na liberdade com que se
vive todos os momentos que atravessamos. E, nesse sentido, procuro genuinamente
fazer o que me apetece e não o que esperam de mim.
– Dizes que és tímido, mas não achei. Olhas as pessoas nos olhos, a tua
atitude é descontraída, calaste-me no primeiro encontro – progresso ou truque?
– Uma mistura dos dois, acho eu. Ter vindo para o mundo da música fez-me lidar
com a minha timidez natural desde muito cedo, desde as loucuras em palco à
exposição pública. Hoje sinto-me mais à vontade com essa faceta da minha
personalidade e tento que essa timidez não me impeça de fazer o que quero. No
entanto, sempre olhei as pessoas nos olhos, ainda é a melhor forma de saber
quem está à nossa frente.
– Há um lado clássico em ti que me surpreendeu: tens um casamento estável e
filhos felizes, usas aliança, tens hábitos clean, não me pareces
sensível ao assobio das drogas – os músicos da tua geração já sentem a atracção
da saúde ou és excepção?
– Julgo que o arquétipo do músico ‘maldito’ sempre foi muito exagerado e
algo injusto. É certo que existem loucuras na minha profissão, mas não vim para
a música para preencher um molde pré-estabelecido da caricatura mais vigente e
simplista. Acima de tudo, olho para esta profissão como uma oportunidade
gigante de estabelecer contacto com os outros de forma criativa e não para
entrar numa viagem egocêntrica e fugidia. Não sinto atracção por nenhuma forma
estanque de estar na vida e não sinto a necessidade de encaixar-me nas imagens
já existentes. E julgo que essa liberdade é a grande característica dos músicos
da nova geração.
– Quem admiras em termos musicais?
– Admiro imenso o Sérgio Godinho, com quem colaborei diversas vezes. É
uma pessoa com uma energia criativa constante e que nunca se fechou na sua
própria música. Continua a ser um dos nossos mais profícuos e interessantes
músicos do nosso tempo e um exemplo claro de trabalho e consistência artística.
Fora de Portugal, sou um grande admirador de Tom Waits e do universo
gigante que construiu à sua volta, um autor de referência ainda a construir
algumas das mais belas canções actuais.
– Não conheço o teu trabalho fotográfico, fala-me dele. Se fosses fotógrafo
profissional que filosofia presidiria a essa tua arte?
– Vejo a fotografia como uma continuidade do que faço na música, uma maneira de
mostrar um ponto de vista, de contar uma história de forma menos convencional.
Julgo que se fosse fotógrafo profissional seria essa a minha postura em relação
ao meu trabalho, uma procura constante de um outro mundo que não se encontra à
superfície. Aliás, nada realmente interessante pode ser encontrado à
superfície, é preciso algum trabalho e dedicação para encontrar o que realmente
interessa.
– Facilita o meu trabalho [risos]: que defeitos tens, como pessoa? E
qualidades?
– Não sou uma pessoa muito organizada e é muito fácil a minha vida prática ser
atraída por um caos de eventos que me destabiliza sistematicamente. Sou ainda
uma das pessoas mais distraídas à face da terra e, no entanto, prendo-me com
pormenores de importância extremamente relativa. E é sempre difícil nomear
qualidades sem parecer um exercício narcísico, mas gosto de pensar que sou uma
pessoa justa. É uma qualidade que prezo imenso nos outros e espero reter alguma
dessa força.
– Nietzsche dizia que, sem música, a vida seria um erro – concordas?
– A música encerra em si o mistério da possibilidade, do sonho, do
intransponível. Julgo que, por vezes, a música explica melhor a vida do que
qualquer discurso, pela sua abstracção e capacidade de encontrar as nossas
sensações e identificá-las. Não sei se seria um erro, mas seria muito mais
pobre.
– Dizes que não ligas muito a prémios…
– De facto, não ligo muito a prémios, talvez por não acrescentarem nenhum dado
ao que já fiz. Não tenho a atracção pelo púlpito e os prémios costumam
despertar a minha timidez, não é algo que persiga na minha vida.
– Como vês Portugal, hoje e amanhã?
– Vejo um país em dificuldades e com muitos desafios pela frente. Pressinto que
há uma certa forma de ser mais negativa e passiva que mudará nos anos
vindouros, fruto da insatisfação e das expectativas goradas. O país teria muito
a ganhar com uma população mais activa a defender aquilo em que acredita e as
novas gerações serão decisivas sobre a forma como vemos e vivemos o nosso
país.
– E a crise que vivemos? De que forma te afecta?
– Afecta da mesma forma que atinge a maioria de nós. Há muitas áreas da minha
profissão que têm de ser reformuladas de forma a continuarem a funcionar e a
criatividade é, mais do que nunca, a nossa principal aliada para combater a
crise. Eu estou no ramo da criatividade, o que aumenta a minha responsabilidade
em responder da melhor forma aos desafios deste presente conturbado. Mas sempre
em frente, que esse é que é o caminho.
– Quem és tu, David Fonseca?
– Tenho uma ideia, mas está sempre em mutação. Acho que sou uma pessoa inquieta
que procura respostas de forma criativa e construtiva, uma pessoa mais
interessada no caminho que percorre do que na finalidade dele. E é mesmo
verdade o que dizem, o caminho é sempre mais interessante do que o destino.
NOTA:
Por vontade da autora, este texto não obedece às regras do novo acordo
ortográfico.
David Fonseca: “A música explica melhor a vida do que qualquer discurso”
Rita Ferro conversou com o músico, que tem um novo disco, ‘Seasons’, em dois volumes: ‘Rising’, que já está à venda, e ‘Falling’, que será editado em Setembro.
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