É um homem raro e quisemos prestar um tributo à sua cabeça portentosa e ao seu encantatório poder de comunicação. Chama-se Marcello Duarte Mathias, é filho do grande diplomata homónimo e nasceu em Lisboa, em 1938. David Mourão-Ferreira, um dos nossos poetas maiores, considerava-o “um talento aforístico de primeira água, com uma rara capacidade para captar o que há de essencial no quotidiano”. É, de facto, um fenómeno de vivência e de mundividência, de memória e de energia contagiante. Escreveu cerca de uma dezena de livros, entre a ficção, o ensaio e a diarística, dos quais o Brevíssimo Inventário e o Diário de Paris fizeram as delícias de artistas, colegas e intelectuais.
Ingressou na carreira diplomática em 1970. Esteve colocado sucessivamente em Brasília, Bruxelas, Nova Iorque, tendo chefiado as nossas embaixadas em Nova Deli e Buenos Aires. Em Janeiro de 2001, foi nomeado embaixador da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), cuja sede é em Paris, tendo sido jubilado em finais de 2003. Recebeu-nos na sua casa da Abuxarda, na companhia da mulher, Anne-Marie, e a conversa, apaixonante, só foi interrompida pelos arroubos afectivos de um magnífico exemplar de Boeiro de Berna, um cachorro tão vivo e robusto que atirou, por duas vezes, com a entrevistadora ao chão.
– Que voltas deu e por quanto tempo?
Marcello Mathias – O primeiro posto foi a nossa embaixada em Brasília, depois Bruxelas no período anterior à adesão às Comunidades Europeias, onde fiquei seis anos, de 1977 a 1983. Regressámos a Lisboa e aqui permaneci cerca de oito anos, tendo exercido várias funções no MNE. Depois Nova Iorque, Nova Deli, Buenos Aires e a UNESCO em Paris.
– Ficou-lhe certamente o gosto pelas viagens…
– Sim, agora viajamos livremente. Temos vindo estes últimos anos a descobrir o sul de França, à volta de Aix-en-Provence. E a Itália, dos lagos italianos à costa amalfitana. Um deslumbramento. A verdadeira Europa!
– Partilhou muitas das suas experiências em livro…
– Só acredito nas coisas depois de as escrever. É essa a melhor experiência. Daí dizer-se que escrever seja viver duas vezes.
– Teve e tem uma vida cheia. Acha que o brilho de uma carreira diplomática se deve ao charme nas relações ou à geografia das embaixadas?
– O meu pai e o meu irmão Leonardo tiveram carreiras diplomáticas brilhantíssimas. Ao lado dessas, a minha foi perfeitamente anódina. Tenho, em todo o caso, a sorte de ambos os meus filhos, o Marcelo e o Nuno, serem diplomatas e, se me é permitido dizê-lo, julgo que beneficiam tanto um como o outro de excelente cotação profissional. Bem hajam!
– Como foi viver dividido entre Portugal e outros países? Que reflexo teve no seu casamento e na educação dos seus filhos?
– A diplomacia é um ofício extremamente exigente, tanto no campo profissional como pessoal. Em grande parte por causa dos nossos filhos, optámos por ficar seis anos em Bruxelas e oito aqui em Portugal, para não os afectar com adaptações permanentes, pois são os filhos quem mais sofre com esse estado de coisas. Mas a vida diplomática tem também, em paralelo, numerosos outros aspectos gratificantes e enriquecedores.
– A propósito de família: que papel tem o cônjuge numa profissão como a sua?
– Ao longo de todo o meu percurso, a Anne-Marie teve um papel decisivo em termos de presença, apoio e estímulo.
– Quer falar-nos dos seus livros?
– É sempre difícil a um autor evocar os seus livros, mas diria antes de mais que nada têm a ver com a minha vida profissional, são compartimentos estanques. Quero crer, todavia, que há neles, individualmente e em conjunto, um mesmo olhar facilmente discernível.
– Que surpresas literárias nos reserva?
– A Dom Quixote publicará em 2013, pelo centenário de Albert Camus, uma reedição do meu ensaio editado em 1975, no Brasil, A Felicidade em Albert Camus. Gostaria também de publicar um estudo sobre a Europa intitulado A Europa à Procura dos Europeus. Vamos ver se há paciência e energia para tanto.
– Tem uma cultura generosa e é um comunicador fenomenal, é estranho que a nossa TV se dê ao luxo de dispensá-lo. Já algum canal o contactou?
– Que eu saiba, não!
– É também um pensador genial e o seu Brevíssimo Inventário, repleto de achados e ensinamentos, está sempre por perto em minha casa. Sobre o amor, um dia escreveu: “O verdadeiro amor é uma grande cobardia. Uma grande cobardia partilhada.”. Fiquei sempre intrigada com esta frase…
– Não sei porquê… O amor é uma tomada de consciência da precariedade dos sentimentos, da transitoriedade de tudo isto, do efémero das relações, da hostilidade do mundo em redor, da vulnerabilidade que nos ameaça.
– Gostava de sondar a sua sensibilidade sobre Portugal e o estado actual das coisas…
– Estou reformado há já vários anos, vivo retirado numa aldeia perto de Cascais e vou pouco a Lisboa. Dito isto, sigo com toda a atenção a vida política portuguesa e o que mais me surpreende é termos chegado a este ponto de descalabro. Haveria muito a dizer sobre tudo isto, mas prefiro ficar por aqui.
– Escreveu, não sei se com ironia, que “o destino português é ser-se emigrante ou retornado. Ser-se pobre, afinal”...
– É o que se está a ver agora. A pobreza foi desde sempre o horizonte essencial dos portugueses, a modéstia é a palavra que caracteriza a vida nacional. Para lá dos novos-ricos, que não interessam, há em todos nós o mesmo sentimento de modéstia e contenção, porque se foi sempre pobre em Portugal. Basta ir ao estrangeiro. Mesmo em cidades como Buenos Aires apercebemo-nos de um certo estilo de vida que nunca foi nosso. Com esta crise voltou a nossa adaptação à pobreza.
– E sobre o povo português e os seus traços identitários – como nos vê face a outros povos que conheceu de perto?
– O povo português sente-se – à semelhança de outros povos europeus – um tanto perdido, sem rumo nem referências. É este outro aspecto da crise actual e não é um ponto menor. Bem pelo contrário. Mas é um povo magnífico, solidário e generoso, com o coração nas mãos.
– Que conselho nos daria um homem com a sua experiência?
– Não dou conselhos a ninguém, nem sequer a mim mesmo!
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.
Embaixador Marcello Mathias: “A diplomacia é um ofício exigente, tanto no campo profissional como pessoal”
Marcello e Anne-Marie Mathias receberam Rita Ferro na sua casa da Abuxarda, na zona de Cascais, onde, findos os anos da diplomacia, passam hoje a maior parte do tempo.
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