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No dia 2 de julho de 2012, no aeródromo de Duxford, Inglaterra, durante uma sessão de testes a um carro de Fórmula 1, a piloto espanhola María de Villota, de 32 anos (filha do ex-piloto de F1 Emilio de Villota), sofreu um acidente que a deixou entre a vida e a morte. Um ano depois, terminou um livro em que falava da sua experiência e da forma como o acidente, no qual perdeu um olho, a fez encarar a vida de outra forma. As sequelas, infelizmente, foram inultrapassáveis, e a espanhola acabaria por morrer a 11 de outubro de 2013, quando já fazia uma vida razoavelmente normal e três meses depois de se ter casado com Rodrigo García Millán. Fazemos a pré-publicação desse livro, que chega agora às livrarias portuguesas.
“María de Villota: A Vida é um Presente”
“Ter um acidente que nos deixa em perigo de vida pode ser uma coisa terrível, mas, se conseguirmos salvar-nos e viver com dignidade, pode ser uma dádiva, tão grande que nos devolve a infância, nos tira de cima alguns anos e a armadura, redireciona os olhos para a alma e nos faz sentir como se tivéssemos acabado de nascer. E assim é, porque acabámos de nascer. (…)
Mesmo quando estamos à beira da morte, podemos decidir se continuamos a lutar ou se abandonamos o barco. Eu não vi um túnel, nem uma luz. Sou crente, mas não vi ninguém nem ninguém me disse nada. No entanto, estava a travar um combate, naquela sala de operações, ao ponto de sentir uma fadiga indescritível. Mas decidi continuar a lutar. (…) Sinto que podia ter desistido, mas a minha essência, a minha alma, decidiu continuar a lutar.”
No Hospital
“Sinto que preciso de silêncio. De descansar. Quero que parem, que acabem com aquilo.(…) Foram cinco dias em coma, três operações e mais de trinta horas de intervenções no total. ‘Ainda bem que estava em forma, María’, disseram-me mais tarde os cirurgiões. ‘Pudemos continuar a operar, porque o seu coração respondia bem.’
A realidade é que entrei na sala de operações em estado crítico e fui submetida a várias operações de alto risco por causa da lesão cranioencefálica e cerebral causada pelo impacto. A primeira e mais importante durou 17 horas e a minha família já não acreditava que conseguisse resistir. Fui operada mais duas vezes, porque a reconstrução facial também era importante e necessária.”
O Acidente
“Mais um dia de chuva no Reino Unido. (…) Era um dia por que tinha esperado. (…)Nesse dia, daria mais um passo na minha carreira; não era um dia difícil, mas era importante, muito importante para mim.
Quando entra no carro, o piloto de corridas não sente medo. Não é por sermos loucos, mas porque trabalhamos minuciosamente no pormenor, no controlo, na segurança. Sentimos que está nas nossas mãos.
Nesse dia, não esteve. Nos meus pesadelos e fora deles, revivi vezes sem conta cada pormenor daquele momento e não havia nada que eu pudesse ter feito para alterar o resultado. Naquele aeródromo de Duxford, poucos minutos depois de começar o teste, iria haver uma certidão de óbito. A minha.
Lá no alto não quiseram que eu morresse e, agora, só quero que o que me aconteceu não se repita. (…)”
A Família
“Uma ambulância chegou ao hospital de Addenbrooke. (…)Cheguei com a cara desfeita mas com vida, acompanhada pela minha irmã mais velha, Isabel. (…) Os meus pais, o meu irmão Emilio e o meu namorado, Rodrigo, apanharam um avião assim que souberam. (…) Encontraram-se todos nas urgências, em Cambridge. Nenhum deles fala comigo sobre esse momento. Penso que há sentimentos que não é possível expressar.
(…) Só os meus pais e a minha irmã foram autorizados a ver-me, por causa do aspeto horrível que eu tinha. Prefiro guardar para mim os pormenores. Mas estava viva. (…) Estavam preocupados porque, no momento em que tive a primeira reação, os médicos lhes disseram que não sabiam se eu ia poder mexer as mãos e os pés. Também não sabiam se ia conseguir falar, porque a rampa do camião causara uma lesão na parte frontal direita do cérebro, e isso podia igualmente acarretar problemas na gestão de tarefas e, inclusive, provocar transtornos de personalidade. O médico pediu-me que mexesse as mãos e eu respondi… mexendo-as! (…) Não sei quanto tempo passou, mas também comecei a falar. (…) O médico disse-me: ‘Foi um acidente muito grave, María. Não sabíamos se íamos conseguir salvar-lhe a vida.’ E prosseguiu: ‘María, não conseguimos salvar o seu olho.’ Nesse momento, dei-me conta de que não podia abrir o olho direito, não havia nenhum movimento, nem sequer a pálpebra se mexia.”
Perder um Olho
“Só pensava no meu olho. Chorei, ao mesmo tempo que me dava conta da presença da minha família, que me beijava com o olhar. Creio que ainda chorava com os dois olhos: pelo menos foi o que senti. Desde esse dia, já só choro com um. Acabei por me render. (…) Dizem que, quando acordei pela primeira vez, perguntei pelo Rodrigo. Não me lembro disso. Recordo-me, sim, de que ele estava sempre presente nos meus sonhos. Encontrava-me na cama, quando o vi espreitar à porta do quarto. Sorria e aproximou-se para me pegar na mão. Estava ali! Que alegria! (…) Não tinha consciência de que estava a ver-me com mais de cem pontos na cara, com a pálpebra fechada e gases a tapar o osso lacrimal, para proteger o enxerto de pele que tinham tido que fazer. Além disso, tinha metade da cabeça rapada, não mexia bem os músculos da cara e o meu sorriso era só meio sorriso. Mas eu não sabia disso. (…)
A operação para tratamento da lesão cranioencefálica parecia ter sido um êxito: tinha cinco placas de titânio na cabeça, mas o que mais os preocupava era o cérebro. Algum tempo depois, fiquei a saber que perdera massa cerebral, ou seja, um pedaço do cérebro.”
Ao Espelho
“Passei por uma casa de banho e disse à minha mãe que parasse: havia um espelho, mas penso que ela não teve consciência da minha intenção. Olhou para mim diretamente, enquanto eu ficava estupefacta. Caiu-me a alma aos pés. Vi a cara de uma mulher com o semblante contorcido, atravessado por uma cruz de pontos que ia da testa ao canto da boca, passando pelo nariz. A pálpebra direita estava fechada, mas a minha cara estava tapada por uma gaze unida por pontos, desde o osso lacrimal, e a pálpebra inferior era contornada por mais uma cicatriz que ia até à orelha e me dava a volta à cabeça. A minha expressão facial era uma careta, os músculos não eram simétricos, a minha cara não era simétrica, o lado direito da minha cabeça parecia ter sido passado a ferro. No pescoço havia outro corte profundo e feio. Do mais fundo do meu ser, e quase como um suspiro, disse: ‘Quem é que vai gostar de mim?…’ A minha pobre mãe (…) não conteve as lágrimas e, quando vi a cara dela, a minha atitude mudou radicalmente, como se tivesse acordado daquele pesadelo. Então, gracejando, disse ao espelho: ‘Vai-te embora, bicho!’ E desatei a rir. Apesar de ainda ter lágrimas nos olhos, a minha mãe não conseguiu deixar de se rir também. Levou-me para o quarto e comuniquei a toda a gente que já me tinha visto ao espelho. (…) Tínhamos dado mais um passo.”
Rodrigo
Depois de me ter visto ao espelho (…) preocupava-me aquilo que o Rodrigo sentiria e o nosso futuro. (…) Ele sentou-se no lado esquerdo da cama e, num alarde de coragem, tentei afastá-lo. Disse-lhe que ainda não sabíamos como ia ser o meu futuro, se poderia ser uma mulher independente (…) ‘Não quero que estejas comigo por pena’ (…) Fiquei à espera da resposta, com um nó na garganta. Aquilo saiu-me de uma tirada, sem que a voz me tremesse, sem chorar, mas sabia que estava à beira do abismo. Ele pegou-me na mão e disse que, apesar de tudo, estava apaixonado. Que, antes de me ver não sabia como ia reagir mas que agora tinha a certeza de que queria estar comigo. (…) Foi um momento crucial para o meu regresso à vida, porque comecei a sonhar, comecei a contagem a partir do zero.”