Maria Ana Bobone, 39 anos, casada, três filhos – Frederico, 12, Leonor, 7, e Francisca, 4 – estreou-se a cantar fado aos 16 anos, antes ainda de concluir os cursos de Piano e de Canto do Conservatório Nacional de Música de Lisboa e de se licenciar em Comunicação Social e Cultural na Universidade Católica de Lisboa. É imediatamente reconhecida pela sua elegância a cantar, na tradição das grandes vozes. O seu primeiro trabalho discográfico, gravado em parceria com outros dois fadistas, será o início de uma carreira promissora. Seguidamente, e já a solo, grava dois discos para a editora americana MA Recordings, onde acolhe novos instrumentos (cravo e saxofone), mantendo, claro, a guitarra portuguesa. Grava depois Nome de Mar, trabalho inspirado num poema que lhe deu Manuel Alegre e lhe traz o merecido reconhecimento. Depois de Fado & Piano, eleito pela World Music Central para o top 5 de Best World Music Album of 2013, gravou recentemente um single e um videoclip de grande beleza, num dueto surpreendente com Mikkel Solnado. Encontrámo-nos com ela no Hotel Palácio do Estoril, onde conversou connosco sobre a vida e sobre o fado.
– Como está a música em Portugal?
– Atravessa uma fase de grande vitalidade! Temos excelentes cantores, músicos, compositores, e cada vez mais há uma consciência disso, o que é excelente. A prova é a quantidade de jovens que já arriscam numa carreira artística, e que, graças aos novos meios de comunicação, chegam aos seus públicos com excelentes resultados e com o devido reconhecimento.
– Há alguns anos, os nossos artistas queixavam-se que os seus temas não passavam nas rádios portuguesas…
– Desde que houve na televisão um célebre debate sobre este tema penso que as coisas melhoraram um pouco, embora não haja lugar para todos, o que é muitas vezes uma pena. A proliferação de estações de rádio mais “temáticas” como por exemplo a Rádio Amália, para o fado, vieram também ajudar a que todos os tipos de música pudessem ter air-play e chegar às pessoas.
– Com a descarga ilegal de downloads, a venda de discos ressentiu-se brutalmente. Os concertos são agora o único recurso dos artistas para se sustentarem?
– Eu diria que sim. Penso que vai sendo muito difícil estancar o problema dos downloads ilegais, o que é complicado para as editoras. Apesar de estar a crescer uma certa responsabilidade no público, que já justificou o aparecimento de plataformas de streaming como o Spotify e o Deezer. Os ouvintes pagam uma mensalidade para ouvir todas as músicas na sua base de dados. Mas, para cada artista individualmente, isso não representa uma forma de rendimento sustentável. Por outro lado, as editoras defendem-se também agora exigindo comissões nos concertos e tornando cada vez mais difícil a vida dos artistas. Como alternativa, aparece cada vez mais a figura do artista/empresário que, de forma criativa, inventa maneiras autónomas de gerar rendimento.
– Uma pergunta indiscreta: vive exclusivamente da música ou tem outras actividades?
– Vivo exclusivamente da música.
– A sua versatilidade já foi sobejamente reconhecida…
– Desde a adolescência que canto música pop, country, baladas, e ainda as minhas próprias canções. Também adoro cantar no contexto acústico e espiritual de uma igreja, a música coral é das que mais gosto de cantar.
– É o fado que realça as maiores potencialidades da sua voz?
– Fado é uma linguagem musical na qual me sinto muito em casa e com a qual tenho uma afinidade construída ao longo dos anos. No entanto, sinto sempre no fundo uma inquietação que me chama a experimentar outros estilos. É uma questão de feitio…
– Gravou agora com o Mikkel Solnado, filho de Raul Solnado, um tema e um videoclip deslumbrantes. Como se cruzaram na vida?
– Somos ambos artistas ligados à MTV Portugal, que criou a plataforma MTV Linked e nos proporcionou este encontro. Recentemente, conhecemo-nos numa acção de sensibilização promovida pelo canal e fiquei fã. Com a ajuda do produtor Rodrigo Serrão, fui buscar às minhas composições – que são num estilo mais transversal – um tema que achámos que poderia encaixar nos dois estilos. O resultado superou as nossas expectativas.
– Foi eleita para o top 5 do World Music Central com o seu disco Fado & Piano. Quer contar?
– Esta distinção honra-me de duas formas. A primeira, porque a nomeação significa o reconhecimento do meu trabalho por profissionais altamente qualificados a nível internacional. A segunda, porque, sendo a eleição feita pelo público, um quinto lugar em 100 nomeados significa que há uma grande aceitação da música que faço, mesmo além-fronteiras. Isso deixa-me feliz.
– O meio musical é igual a todos os outros?
– Sim, não difere assim tanto dos outros. Na forma como as coisas se organizam há as mesmas regras e pressupostos. Sendo a música algo que é comercializado, rege-se também pelo dinheiro/poder/networking e só com alguma sorte e trabalho se consegue sucesso sem ceder demasiado a este jogo. É um meio tão agressivo como o da publicidade, o imobiliário ou mesmo o da política, a que os profissionais chamam “A Indústria”.
– A crise ajuda a criação?
– Ajuda à criatividade em termos de soluções práticas. Do ponto de vista artístico, pode funcionar como estímulo temático. No meu caso concreto, deixo a música e a crise em compartimentos separados.
– De que modo e com que frequência treina a voz?
– Noutros tempos fazia exercícios e tive aulas de canto, mas hoje acho que o melhor treino é poder cantar em público de forma regular, no ambiente acolhedor e mais descontraído de uma casa de fados. É também o “laboratório” perfeito para fazer todo o tipo de experiências.
– Que cuidados requer a voz?
– No meu caso, a voz depende muito do estado físico geral. Tento descansar “quanto baste”, alimentar-me bem e beber bastante água. Uma boa gestão do stresse também é fundamental.
– Canta aos seus filhos à noite?
– Sim, e também a fazer tarefas ou em viagens de carro.
– Uma história engraçada com eles?
– Recentemente, a minha filha de sete anos, já farta de me ver sair à hora de lhe contar a “história ao deitar”, senta-se ao meu colo e pergunta com um ar pragmático: “Ó mãe, mas afinal quanto lhe pagam?!?” A mais nova diz: “a minha mãe vai cantar o fato”, e o mais velho, quando lhe perguntaram a minha profissão, escreveu: “fadeira”.
– Que projectos e sonhos tem?
– Projecto: fazer um disco em que aborde outras linguagens musicais, que são também facetas minhas, mas que o público não conhece. Sonho: abrandar o tempo.
– Como vê Portugal nesta fase difícil?
– Apesar de tudo, há um esforço muito corajoso por parte das pessoas que respondem a estes tempos difíceis com energia, criatividade e força.
– Que mais deseja para o seu país?
– Sustentabilidade.
– Quais as suas referências no fado?
– São os clássicos: Amália Rodrigues em primeiríssimo lugar, porque o transcende; Hermínia Silva e Lucília do Carmo, porque o vivem; Alfredo Marceneiro, porque o conta em histórias; Maria Teresa de Noronha, que o depura; Carlos Ramos, com o seu maravilhoso repertório; e ainda, na composição e execução, figuras como Armandinho, Raul Nery, Fontes Rocha, Joel Pina, Carlos Gonçalves… Foi uma geração dourada da qual existem registos e a que a minha geração pode ter fácil acesso, e que certamente inspira ainda muitos fadistas actuais.
– E noutros tipos de música?
– Edith Piaf, Elis Regina, Concha Buika, Mercedes Sosa, Sinéad O’Connor, Sarah McLachlan, Loreena McKennitt, Celine Dion, Michael Bublé, Freddie Mercury e por aí fora.