Eunice Muñoz chegou ao Teatro Nacional D. Maria II, onde se estreou aos 13 anos, com um sorriso encantador e cheia de histórias para contar. 86 anos de vida e 73 de carreira são muitas histórias para partilhar, pode mesmo dizer-se que a sua vida dava um livro.
“Já estou a preparar um, por insistência dos meus filhos”, assegura. Aqui ficam algumas.
“Já estou a preparar um, por insistência dos meus filhos”, assegura. Aqui ficam algumas.
– Esta é uma casa muito especial para si, não é? Foi aqui que se estreou, em 1941, com a peça Vendaval.
Eunice Muñoz – É verdade. Lembro-me muito bem desse dia. Tenho sempre a imagem do dia da estreia: era uma escola, estávamos várias deitadas em camas. E o levantar deste pano gigantesco foi uma emoção tão forte para mim, uma imagem que me ficou para sempre e ainda agora essa imagem tem a mesma força, tal foi a emoção. Era eu uma miúda com 13 anos, tinha trabalhado com os meus pais e os meus avós, que faziam teatro na província, portanto, num ambiente modesto, e chegar aqui e ver este deslumbramento… Fiquei do tamanho de uma formiga.
– Mas saiu-se muito bem. Aos 86 anos é considerada uma referência…
– É verdade, parece que sim, parece que não me saí mal. Mas essas coisas, de ser uma referência, não me pesam muito. Passo o tempo a esquecer-me disso, o que me dá grande satisfação, porque me dá frescura. Penso que é isso que me deve ajudar a nunca me sentir velha, não pensar que sou um exemplo. Fico contente quando os jovens me falam e sempre com tanta estima e ternura… Agrada-me, mas isso não me modifica em nada.
– Com um percurso tão vasto e rico, poderia ser menos humilde…
– A minha natureza não é assim nem nunca foi.
– Os encenadores fazem ‘cerimónia’ consigo? Não se ‘atrevem’ a dirigi-la ou fazem-no com mais cuidado, por ser quem é?
– Não, nada disso. E eu fico grata por isso. Sou eu própria que lhes peço para estarem completamente à vontade comigo, para me dirigirem como acharem melhor. É indispensável que eles nos dirijam. E se eu pressentir que fazem cerimónia, peço logo para não o fazerem.
– E aceita bem as críticas?
– Sim, claro. Respeito muito a opinião dos encenadores.
– Com 73 anos de carreira, fez muita coisa. O que recorda com especial carinho?
– Tenho muitas memórias. Lembro o primeiro grande êxito da minha vida, que foi a Joana d’Arc (1956), porque foi realmente um êxito excecional que encheu o Teatro Avenida. Havia filas enormes à porta, foi uma coisa muito bonita e que me deu grandes alegrias. Depois destaco Zerlina (1988), encenada por João Perry. Gostei muito de trabalhar com ele, raramente o faz, mas é um excelente encenador. De Mãe Coragem e Seus Filhos (1986), também com o Perry, tenho muito boas recordações. Foram dias inesquecíveis de aprendizagem, porque eu penso e sinto e sou da opinião que esta profissão é uma aprendizagem constante até ao fim. Adorei contracenar com Eva Wilma em Madame (2000). Tenho de destacar a última peça que fiz aqui, O Ano do Pensamento Mágico (2009), encenada por Diogo Infante, e a última que fiz, a última vez que subi ao palco, O Comboio da Madrugada, ao lado da minha neta Lídia.
– E o que ficou por fazer?
– O que ficou por fazer foram aquelas que a censura não deixou. São as mais dolorosas, porque são aquelas que, quando se tornou possível fazê-las, já não tinha idade para elas. Roubaram-me.
– A Eunice também é um exemplo de uma ‘Mãe Coragem’: conseguiu construir uma vasta obra enquanto criava seis filhos.
– Não foi muito difícil, porque estive sempre casada com homens que me ajudaram muito nessa tarefa de criar os meus filhos enquanto trabalhava. Principalmente o meu segundo marido, com quem tive quatro filhos. Foi um pai e um marido muito dedicado. [Eunice foi casada com Rui Ângelo de Oliveira do Couto, de quem teve uma filha, Susana, depois com Ernesto Borges, de quem são os filhos Joana, António, Pedro e Maria, e por fim com António Manuel Baptista Barahona da Fonseca, pai de Eunice António].
– Nunca pensou deixar a representação para cuidar dos filhos?
– Houve alturas em que estive parada, mas não fui capaz de abandonar esta vida. Tive mesmo a sorte de me ter casado com estes três homens que percebiam que eu devia fazer teatro, que era uma coisa que fazia parte de mim, que era necessário, que me fazia mesmo muito falta.
– Não seria feliz como dona de casa…
– Também sou dona de casa e gosto muito [risos]. Nunca paro, quando estou em casa, ando sempre de um lado para o outro a mexer em coisas. Mas respondendo à pergunta, não. Precisava do teatro e merecia-o. É uma vocação e não se vira as costas a isso.
– Em relação aos seus filhos, há arrependimentos dessa época? Sente que perdeu parte do crescimento deles?
– Há, claro. Fui perdendo, de uns mais do que outros. Foi uma consequência, mas teve de ser. Dependi muito da ajuda familiar e de colaboradores de grande confiança…
– Voltaria a fazer tudo igual?
– Tudo igual.
– Tem uma boa relação com eles?
– Tenho. Amo muito os meus filhos e acho que eles me amam também, acho que não há ressentimentos. São uns grandes filhos. E agora, nesta fase em que estive tão doente, eles demonstraram bem como são dedicados, estão sempre prontos para estar comigo, andarem comigo de um lado para o outro… Tenho uns grandes filhos. Foi o melhor que fiz nada vida, eles e o teatro.
– O amor pelos filhos e pelo teatro andam a par…
– Sempre [risos].
– Falando da doença. Como está? Ainda espera por mais uma cirurgia?
– Sinto-me bem. Os médicos não quiseram fazer, para já, nova cirurgia, porque também é preciso tempo para fortalecer o que é fundamental. Estou a fazer ginástica por recomendação deles e quando estiver melhor fisicamente, mais fortalecida, voltamos a conversar sobre a operação. Continuo a fazer terapia da fala. A recuperação da voz é um processo muito lento. Mas tenho fé em Deus.
– Tem fé que ainda possa subir ao palco?
– Sim, tenho, gostaria muito de o fazer. E já tenho projetos para quando voltar. A primeira coisa que farei será com o Filipe La Féria. Ele está à espera há muito tempo, temos um compromisso há muitos anos, que é fazer As Árvores Morrem de Pé, de Alejandro Casona.
– O que dizem os médicos? Quando recuperará a voz?
– Ninguém pode dizer isso. É esperar. Tenho-me esforçado e já se notam grandes melhorias.
– Só lhe falta mesmo a voz, porque energia tem!
– Pois tenho! Se não fosse a voz, podia subir já para cima de um palco. E, se Deus quiser, hei de subir.
– Já lhe disseram que quando está em palco, parece que perde uns anos e volta a ser jovem?
– Já. Eu também sinto isso. Faço-o sem dar por isso, não tem explicação.
– Do tanto que já se disse e escreveu sobre si… Como é que gostava de ser recordada?
– Como uma alentejana da Amareleja que também é atriz. E está bom!
– Continua a ir à Amareleja?
– É tão raro lá ir…
– Já não tem lá família?
– Não. Se tivesse era mais fácil ir. Foi tudo envelhecendo, foi tudo desaparecendo…
– Já lá foi mostrar a sua terra aos filhos ou netos?
– Alguns foram em pequenos, quando deram o meu nome à rua onde nasci. Tenho de os levar lá…
– Alguma vez pensou que ia dar o nome a uma rua na terra onde nasceu?
– Pois é, nunca [risos]! As voltas que a vida dá. E sai de lá com sete anos…
– Teve três maridos. Era muito namoradeira ou de relacionamentos longos?
– Ainda estive casada uns anos com cada um. Mas sim, sou uma criatura muito apaixonada, sempre fui [risos]. Apaixonei-me muitas vezes e ainda bem.
– E partiu muitos corações?
– Ah, isso não me cabe a mim dizer. Mas acho que tive muitos pretendentes [risos].
– Teve uma vida muito rica…
– Tive mesmo. Vivi grandes amores, tive seis filhos fantásticos, trabalhei com grandes atores, estive com todos os grandes cómicos, o que foi muito bom para mim, porque ensinaram-me a fazer comédia como só eles sabiam. Vasco Santana, Francisco Ribeiro, António Silva, Henrique Santana… aprendi muito com eles.
– A sua vida dava um livro…
– Já estou a preparar um e está bastante adiantado. Levo tempo a lembrar-me de algumas coisas, nem sempre a memória está tão fresca.
– É importante para si deixar essas memórias para a posteridade?
– Acho que sim. Quer dizer, não penso muito nisso. Fui mais incentivada a fazer isto pelos meus filhos, pelo Vítor Pavão dos Santos. Dizem-me: “
Qualquer dia vais embora e não deixas ficar nada, parece impossível.” Felizmente que há televisão, porque do teatro é muito pouco o que fica, só as lembranças na cabeça das pessoas.
Qualquer dia vais embora e não deixas ficar nada, parece impossível.” Felizmente que há televisão, porque do teatro é muito pouco o que fica, só as lembranças na cabeça das pessoas.
– Ouvir dos seus filhos ‘qualquer dia vais embora’ pesa-lhe? Entristece-a?
– Tenho sempre isso na cabeça, mas não me pesa nada. A partir de certa idade sabemos que de um momento para o outro podemos partir. Claro que gosto muito de cá estar, mas quando tiver que ir, irei.
– E vai em paz? Disse tudo o que tinha para dizer?
– Ficam sempre coisas por fazer e outras por dizer.
Produção: Rita Vilhena
Produção: Rita Vilhena
Maquilhagem: Alda Salavisa
Agradecemos a colaboração de: Casa Batalha, Loja das Meias e Teatro Nacional D. Maria II