Alice Vieira é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas da literatura infanto-juvenil, e, como consequência do seu labor infatigável – mais de 80 livros publicados – vende mais do que Saramago. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como jornalista, trabalhou no Diário de Lisboa, onde, juntamente com o seu marido, o também jornalista e escritor Mário Castrim, dirigiu o suplemento Juvenil. Depois, muitos a quiseram: Diário Popular, Diário de Notícias e Jornal de Notícias, para só citar alguns. Colaborou em vários programas de televisão para crianças. Recebeu vários prémios importantes, entre eles o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra. Recentemente, estreou-se na poesia com três livros quase em simultâneo, e logo com o reconhecimento dos pares, da crítica e do público. Em 2010, foi distinguida com a Estrela de Prata do Prémio Peter, para a edição sueca do seu livro Flor de Mel. As suas obras foram traduzidas para o alemão, o búlgaro, o castelhano, o galego, o catalão, o francês, o húngaro, o holandês, o russo, o italiano, o chinês e o servo-croata – um aplauso para esta mulher com uma história formidável, que um dia alguém escreverá. Conversámos com ela no Museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, onde se inspirou para escrever um dos seus títulos infantis.
– Tens truques para seduzir as crianças para a leitura?
– Não são truques… É uma questão de não fazer nada para “baixar” até eles, de escrever para eles como se estivesse a escrever para mim. Detesto textos lamechas, falsamente poéticos. Falo das coisas reais (sou jornalista…) Mas quando reescrevo histórias tradicionais, aí procuro seguir o ritmo dos antigos contadores de histórias, com as repetições, as cadências, etc.
– Se os adultos não recebem na infância a sua dose de maravilhoso e fantástico, ficam, na tua opinião, privados de quê?
– Privados de aprenderem a ter armas para saberem resistir melhor às adversidades, quando crescem.
– É-te possível imaginar o que cada idade procura?
– Não sei o que cada idade procura nem penso nisso. Sei que, se estou a escrever para crianças muito pequenas (que é o que faço menos e o que menos gosto de fazer…) tenho de ter muito cuidado nas palavras que utilizo, não posso escrever textos grandes, etc. A partir daí, sou muito egoísta: nunca penso na idade de quem me vai ler. Penso em mim, apenas. Gosto ou não gosto, é aquilo que quero contar ou não. Por isso é que a maior parte dos meus livros para jovens também podem ser lidos – e são, muitas vezes – pelos adultos.
– Escreveste mais de 80 livros. Não te cansas nunca?
– Canso-me sempre e muito. E digo sempre que quero deixar de escrever.. Mas depois recomeço, sempre. Embora neste momento esteja numa licença sabática – o que quer dizer que durante este ano não há livros para ninguém, porque às vezes a saúde (ou a falta dela…) fala mais alto. Mas tenho três que estão a meio – e a eles voltarei quando estiver melhor.
– Pessoalmente, fiquei fã da tua poesia. Lembra-me um poema do teu Dois Corpos Tombando na Água. Cinco linhas bastam…
– “…Nunca ninguém se prepara convenientemente/ para a chegada do amor/ e ele é sempre um convidado estranho/ sentado em silêncio na penumbra da sala/ olhando os quadros o chão o tecto/ como um velho parente da província/ com medo de dizer o que não deve”.
– Nunca te apeteceu escrever a tua vida?
– Estou sempre a escrever a minha vida… Uma autobiografia? Não, nunca. Há muita gente viva, seria complicado… Mas tenho a meio um romance que tem alguma coisa de autobiográfico, mas é ficção!
– Sabe-se que és uma verdadeira missionária da cultura, que vives entre Escolas e Câmaras Municipais para falar às crianças. Que sementes gostarias de plantar nos seus corações?
– Sobretudo a semente da alegria. E do interesse por aquilo que as rodeia. Não há nada que mais me entristeça do que ver uma criança (ou jovem, ou adulto…) indiferente a tudo. Ter na cabeça pastilha elástica é terrível…
– Apesar de venderes muito, nenhum montante chegaria para pagar a tua permanente disponibilidade para elas e para a cultura portuguesa, as tuas inumeráveis viagens de comboio, sozinha, pelo país fora. Conheço o teu desinteresse material, onde encontras gratificação?
– Nos sorrisos deles, nas inúmeras cartas que recebo de gente adulta a dizer-me como foi importante para eles, em criança, terem-me lido ou terem-me ouvido numa escola… Nas fotografias dos filhos, que me mandam… Nas coisas que oiço… (Há dias passava por um prédio em obras, e ouvi um dos pedreiros a gritar “deixem-na passar, vocês nunca leram livros dela?!”) Há uma carta que uma jovem me entregou a correr, numa Feira do Livro, que anda sempre na minha carteira.
– Que te apetecia estar a fazer neste momento?
– A conversar com a Adriana, minha neta mais velha, neste momento a estudar na Universidade de Glasgow. É tão bom ter uma neta adulta, inteligente, com sentido de humor, e com quem se pode falar absolutamente de tudo…
– Há outro país onde te sintas em casa?
– País, não. Algumas cidades, sim. Em Paris sinto-me em casa: vivi lá nos anos 60, com a minha prima Maria Lamas, que foi das pessoas que mais marcaram a minha vida.
– E o amor, Alice? Ainda é o mesmo?
– Sou uma privilegiada: tive duas grandes paixões na minha vida. A primeira morreu quando ele morreu; a segunda continua ainda…
– Para terminar: que Portugal perdeste e que Portugal ganhaste?
– Não perdi nada, porque tudo faz parte da minha vida. Por isso digo sempre aos jovens que tenho a enorme sorte de ter conhecido o “antes” e o “agora”. Sou da geração da ditadura – mas também da geração da liberdade. Sou da geração da máquina de escrever – mas também do computador. Por isso detesto aquela expressão “no meu tempo”. O meu tempo é agora.
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.
Alice Vieira: “Estou sempre a escrever sobre a minha vida”
Rita Ferro conversa com a escritora Alice Vieira, uma das mais importantes autoras portuguesas de livros infanto-juvenis.
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