Eduarda Abbondanza. O nome que é impossível dissociar da ModaLisboa vai muito além do que conhecemos através deste sonho antigo. Filha de um industrial e de uma funcionária dos CTT, Eduarda sempre foi uma menina extravagante e irreverente, que desejava secretamente encaixar na normalidade da época. Hoje é uma pessoa discreta e sente-se confortável sendo quem é. Dona de uma força interior invejável, já travou batalhas duras, mas continua a ter a atitude pragmática de sempre perante cada adversidade. É o motor de um dos principais eventos de moda do nosso país: a ModaLisboa, que completa 25 anos e ainda hoje é a causa de Eduarda Abbondanza.
– O que é que lhe ficou das viagens que fazia de carro com os seus pais?
Eduarda Abbondanza – [risos] Ficaram-me memórias muito boas, conheci muita coisa. Era pequena e já tinha esse mundo todo. Dormia imensas horas no banco de trás, passar um mês e meio a viajar com os meus pais às vezes era too much.
– Era muito próxima deles?
– Muito. Tinha uma relação muito particular com a minha mãe e uma relação diferente com o meu pai, que não era tão próximo no dia-a-dia. Só me tornei próxima do meu pai mais tarde, na infância era mais a minha mãe. O meu pai era um bocadinho assusadtador para mim. Depois, mais velha, amava-o profundamente, mas foi um trabalho conjunto, porque eu era muito indisciplinada. Nunca menti, mas não cumpria tudo como era suposto. Mas sempre declaradamente, não era sonsa. Como tal, o meu pai muitas vezes incompatibilizava-se comigo. Acho que ele reconhecia em mim alguma coisa dele, porque ele era insuportavelmente rebelde. Mas eu era uma rapariga, portanto, achava que tinha que me disciplinar.
– E os laços foram-se estreitando com a idade…
– Sim, sobretudo depois do meu primeiro casamento. Aliás, casei-me tradicionalmente para apaziguar as coisas.
– Por si não se tinha casado como manadda a tradição?
– Fui eu que me quis casar. Já tinha feito os meus pais passarem muito antes de me casar e foi uma maneira de resolver as coisas. Uma vez fui para Marrocos com amigos, à aventura, mas apanhei uma disenteria e fiquei num oásis sozinha. Regressei dez dias mais tarde do que era suposto, sem ter noção disso. Quando cheguei, acho que os meus pais já tinham avisado a polícia internacional. O desespero deles era enorme. E de repente resolvi que me iria casar e ter uma conduta mais apropriada para eles não sofrerem mais.
– Não lhes custou a sua ida para Itália, após o casamento?
– Não sei… Eles sabiam que eu estava bem, a viver em casa dos meus sogros, foi uma época sem problemas. Quando morria de saudades apanhava o avião e passava cá algum tempo. Normalmente, vinha sozinha e ficava temporadas cá, mas se o meu marido aparecesse, íamos logo para Milão. Não gostava de estar cá com ele.
– Porquê?
– Porque cá tinha que o gerir mais. Ele era um bocado extravagante e sentia-me mais segura lá com ele. Foi uma época muito boa, tranquila, porque quando me fartava de um sítio ia para o outro. Não me enervava, não tinha chatices com ninguém. Foram sete ou oito anos.
– O que levou ao fim do seu casamento?
– O desgaste. Não acabou de um dia para o outro, arrastei as coisas, mas houve um dia em que acordei, fez-se um clic, e não houve retorno. Sou assim para tudo. Lembro-me de partir no dia 22 de dezembro para Milão e de dizer aos meus amigos que me ia divorciar. Voltei em fevereiro e separei-me mesmo. Estive lá o tempo necessário para o meu marido perceber que não era um arrufo.
– É uma mulher apaixonada e corajosa?
– Não sei, não penso muito sobre mim, não tenho essa necessidade. Fiz psicoterapia durante sete anos e ajudou-me a conhecer-me melhor. Achei graça porque fiz o ciclo de psicoterapia todo, foi muito interessante. Percebi a utilidade que tinha para mim, para não repetir padrões. Não preciso de me estar sempre a afirmar. Nem tenho noção da imagem que transmito. Estou confortável. Com tanta peripécia que já passei terei alguma ‘estaleca’, mas convém não abusar.
– De facto, já passou por muito. Foram os momentos maus que lhe deram essa ‘estaleca’?
– Não. São os momentos bons que me dão força para aguentar tudo o resto. Os momenadtos maus são para enfrentar e resolver o mais rapidamente possível. Não é para serem lamentados. Obviamente que nenhum de nós fica cá, todos vamos morrer, portanto, tenho noção de que haverá uma altura em que não me irei safar. Mas enquanto não chegar essa altura, penso sempre como é que me vou livrar do que de mau está a acontecer.
– Foi isso que pensou quando lhe foi diagnosticado o cancro da mama?
– Não, não foi nada disso que pensei. Fiquei em estado de choque e com uma revolta profunda. Fiquei em negação completa, ainda por cima porque é uma doença muito cobarde, velhaca, mesquinha. Só depois é que me consegui organizar e focar no que tinha que fazer, nas coisas que sabia que me iam custar. As tretas do cabelo, por exemplo… Houve um dia que fui ao cabeleireiro e sabia que seria a última vez. Passado uns dias caiu-me a primeira mecha e nesse próprio dia rapei tudo. Mas tinha uma peruca, de cabelo natural, igual ao meu: o mesmo corte, a mesma cor, por isso é que as pessoas não deram por isso. E isso advém do facto de ter percebido que não podia virar as costas e que me tinha que organizar, para sofrer o menos possível, sabendo que não é possível passar por isto tudo sem sofrer.
– E neste processo pensou na morte?
– Penso na morte desde que me conheço. Não sei se a maior parte das pessoas pensa tanto nisso quanto eu. A morte é inevitável… Claro que pensei que podia morrer. E acho que ninguém tem essa questão tão bem resolvida assim. Acho sempre que, perante uma situação de morte iminente, preferia matar-me, mas não quer dizer que isso seja verdade. É uma defesa. E o medo da morte advém do sofrimento.
– Há pouco disse que durante o tratamento se afastou de tudo. Nesse ano delegou tarefas e afastou-se da ModaLisboa, que é a sua causa…
– [Interrompe] Acho que foi uma atitude muito responsável da minha parte.
– Mas não foi uma decisão dolorosa?
– Não. Foi imediata. A partir do momento em que me consciencializei do que tinha pela frente, a solução foi imediata. Seria uma loucura não ter feito isso, porque estaria a pôr em causa uma estrutura. E não se pode lutar por tudo ao mesmo tempo. Não podia fugir ao que se estava a passar comigo, o melhor era encarar de frente. Foi importante organizar tudo, até a casa, porque eu tenho uma filha e um cão, que dependiam de mim, para que pudesse dedicar-me ao tratamento e à minha esperança de vida sem outras coisas.
– Depois de tudo isso, o regresso à ModaLisboa teve um sabor especial?
– O meu regresso foi gradual e acautelado. A quimioterapia afeta imenso o sistema nervoso, a memória, e eu tinha que me validar, tinha que perceber o que era reversível. Tive dúvidas se recuperaria a memória, tive muitos ataques de pânico. E nada disto era meu. Tinha uma herança em cima que não era minha. Portanto, não foi cheia de segurança que regressei.
– Acredito que hoje sinta um grande orgulho por ver até onde chegaram.
– Sim, claro. E estar viva é logo uma vitória. E continuar a ModaLisboa é um motivo de orgulho e de bem-estar, mas não se volta igual. Aliás, nada fica igual. Mas como estou habituada a mudanças, não encaro isso de uma maneira estranha.
– O que é que mudou em si?
– A doença tornou-me mais calma. Tinha sempre muita pressa. Antes de adoecer fiz uma ModaLisboa com três vírus e tive mesmo que aprender a desacelerar.
– Tem sido uma visionária e uma empreendedora, mas também é mãe. Como é que se faz a gestão de um trabalho tão exigente com a vida pessoal?
– Sim, tenho uma filha que eduquei sozinha. E só se consegue com organização e porque sou mulher. É engraçado, porque a ModaLisboa tem uma predominância grande de mulheres a trabalhar. E nós criámos um método: às 19h30 parávamos, houvesse o que houvesse. Toda a gente ia para casa até às 22h30. Os telemóveis eram desligados e podia acontecer uma catástrofe, mas neste período de tempo estávamos só para a família, para os filhos. Depois, às 22h30 voltávamos ao escritório, mas voltávamos focadas, porque tínhamos deixado tudo tratado em casa. E fui conseguindo gerir assim, sempre com muita organização e com a ajuda dos meus pais e da minha empregada. A Sofia nem percebia que, à noite, eu não estava em casa, porque era eu que a adormecia e só saía quando ela já estava a dormir. Quando acordava, de manhã, já eu estava ao lado dela.
– E no meio de tudo isso, já viveu o seu grande amor?
– Já vivi alguns grandes amores. Não sei se há só um grande amor. O meu primeiro marido foi um grande amor. O pai da minha filha também e tenho um namorado há quatro anos que acho que é um grande amor. Eu sou difícil e se ele já me atura há quatro anos, é um grande amor.
Eduarda Abbondanza: “Estar viva é logo uma vitória”
É o motor da ModaLisboa, que faz 25 anos. Uma vitória que junta à de já ter vencido um cancro da mama.