Não sabia ao certo quando nasceu, então escolheu a data do aniversário. Amália elegeu o 1 de julho como seu dia e, segundo isso, faria 100 anos esta quarta-feira.
Amália nasce pobre, em 1920, e nada nos seus primeiros anos de vida parece sorrir-lhe. No entanto, dirá mais tarde que não sofreu por isso. Afinal, já tinha consigo a maior das fortunas: a voz que aos quatro anos já encantava os vizinhos e que já entoava fado, mesmo sem ainda saber o que era. Profundamente crente, diria sempre que esse era um dom divino. Mas Amália não era apenas a voz límpida e poderosa e a intérprete espontânea e dramática que punha toda a sua alma em cada palavra que cantava. Era também uma mulher de uma inteligência acima do comum, que absorvia o mundo com a maior das facilidades, depressa transcendendo o destino sem nome a que a miséria e a pouca instrução a teriam condenado. Era também dotada de uma sensibilidade que desde cedo lhe permitiu perceber que o fado precisava de palavras maiores e melodias superiores. Como se não chegasse, era, com o seu rosto de traços esculpidos a cinzel, o cabelo azeviche, o nariz de linhas perfeitas, os profundos olhos negros e o corpo perfeitamente talhado, uma presença marcante.
Com tal soma de adjetivos, não é, portanto, de admirar que depressa Portugal se lhe rendesse, mesmo os que nem sempre percebiam os grande poetas que fez seus nem as sonoridades pouco convencionais que uma nova geração de compositores imprimiu aos fados que lhe ofereceu. O seu dom divino, no entanto, era grande de mais para ser contido pelas fronteiras de um país orgulhosamente fechado ao exterior. A sua voz viajou à velocidade do som por esse mundo fora, conquistando plateias que, sem compreenderem uma palavra do que ouviam, lhe captavam toda a emoção. Hoje, o seu estatuto de diva internacional poderá parecer de pouca importância, mas há 70 anos foi um feito gigante.
De cantadeira a rainha do fado
Filha de pais beirões, Albertino de Jesus Rodrigues, sapateiro e músico, e de sua mulher, Lucinda da Piedade Rebordão, que cantava no coro da igreja que frequentavam no Fundão, Amália da Piedade Rebordão Rodrigues nasce em 1920 – segundo o assento de nascimento, a 23 de julho, mas, por gostar do “tempo das cerejas”, adota o dia 1 de julho como data do seu aniversário –, na casa dos seus avós maternos, no Pátio Santos, no humilde bairro lisboeta da Pena.
Os pais tinham descido à capital à procura de melhor vida, mas, não o conseguindo, regressam ao Fundão, deixando Amália, com 14 meses, entregue aos cuidados dos avós. Tem seis anos quando estes se mudam para outro bairro igualmente castiço, Alcântara, onde a partir dos 14 anos viverá com os pais, entretanto regressados a Lisboa. Percebendo a sua inteligência, a avó, analfabeta, inscrevera-a na escola aos nove anos, mas aos 12 abandona-a, para ajudar no sustento da família. Trabalha como costureira, bordadeira e operária numa fábrica de doces, até que, aos 15 anos, vai com a mãe e a irmã Celeste, três anos mais nova, vender fruta para a zona do Cais da Rocha.
Por essa altura já se tornara notada pelo seu timbre de voz único e integra, como solista, a Marcha Popular de Alcântara de 1936. Em 1938 participa numa prova de talentos, chamada Concurso da Primavera, em que se disputava o título de Rainha do Fado, mas, por pressão das outras concorrentes, que sabiam não ter oportunidade a competir com ela, acaba por desistir. Será neste concurso que conhece o guitarrista amador Francisco da Cruz, com quem se casa em 1940. A relação dura apenas três anos, apesar de o divórcio só ser assinado em 1949.
Continua a cantar em festas, é notada por um crítico que lhe tece rasgados elogios num artigo em que surge pela vez uma foto sua, e em 1939 estreia-se como profissional no famoso Retiro da Severa, onde permanece seis meses. A partir daí, e até ao início dos anos 50, faz o circuito de todas as grandes casas de fado, do Solar da Alegria ao Café Mondego e ao Café Luso. O sucesso é enorme e os seus cachets aumentam de semana para semana, depressa chegando a valores nunca antes conseguidos por um fadista.
Amália começa por cantar o reportório clássico do fado que há muito se ouvia nas tascas boémias, mas desde sempre anseia por palavras e músicas que reflitam a sua alma. E na sua vida surgiram vários compositores que a perceberam e lhe puseram nas mãos melodias originais de grande qualidade, entre eles Frederico Valério, autor de temas como Ai Mouraria ou Fado Malhoa, Alberto Janes, que lhe deu Foi Deus ou Vou Dar de Beber à Dor, e, sobretudo, o francês Alain Oulman, que conhece em 1962 e que lhe musicará grandes poetas, não só contemporâneos, como Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira ou Alexandre O’Neill, mas até Camões. Essa parceria duraria 30 anos e daria origem a 22 dos maiores sucessos que Amália gravou (e gravou 476), entre eles Gaivota, Abandono, Fado Português e Com que Voz
E o mundo foi de Amália
Diz a letra do Fado Português, poema de José Régio musicado por Alain Oulman, que “o fado nasceu um dia (…) no peito de um marinheiro, que estando triste cantava”. Amália cantou e sentiu essa tristeza no mais fundo do seu peito. Tanto que, quando conseguia entregar-se a interpretações especialmente emotivas, ela própria chorava por se ouvir cantar. Para ela, o fado era um mistério da alma lusa, um destino traçado para o sofrimento. E esse era também o seu destino. Em 1994, no documentário que Bruno de Almeida gravou sobre ela, confessa: “Deus deu-me tudo sem eu procurar nada. E tinha de agradecer mais a Deus e ser contente. Não sei porquê, não tenho explicação para a minha maneira de ser. Nunca fui uma pessoa contente, nunca fui feliz, nada.” Talvez por ser dona desse mistério, soube decifrá-lo para todos quantos, por esse mundo fora, se lhe renderam.
Ao contrário dos seus antecessores, Amália beneficiou desde cedo de algumas circunstâncias favoráveis: o apogeu da rádio, primeiro, e da televisão, já nos anos 50, a qualidade do novo registo discográfico em 78 rpm, a popularização da aviação comercial, que esbateu fronteiras, e o apoio de algumas figuras do regime, que perceberam nela a melhor embaixadora que este país esquecido no mapa poderia ter. Nada disto teria, porém, chegado se Amália não tivesse o dom de eletrizar plateias. E fê-lo logo em 1944, no Brasil, onde o sucesso foi tal que deveria passar três semanas e ficou por três meses. Voltou em 1945, desta vez para permanecer um ano, e ali gravou os seus primeiros discos.
Em 1949 e 1950 canta pela primeira vez em Paris e em Londres; 1952 será o ano da conquista dos EUA, onde se apresenta durante 14 semanas no La Vie en Rose, e regressa dois anos depois, para se apresentar no exclusivo clube noturno Mocambo, em Hollywood.
Será em 1956, no entanto, que a sua carreira no estrangeiro se consolida, depois de os franceses a terem descoberto, belíssima a voz e a mulher, no filme Les Amants du Taje, onde contracenava com Daniel Gélin e é dirigida por Henri Verneuil – porque o seu dramatismo a cantar, associado a uma excelente fotogenia, a tornara também apetecível para o cinema. De 1947 a 1964 Amália participaria em vários filmes, entre eles Capas Negras, Fado, História de Uma Cantadeira e Ilhas Encantadas, dirigida por realizadores como Leitão de Barros, Augusto Fraga e Jorge Brum do Canto, Carlos Vilardebó ou o já referido Verneuil.
E é logo em 1956 que faz o seu primeiro Olympia, templo parisiense da música onde regressará vezes sem conta. Em 1966 regressa aos EUA para cantar no prestigiado Lincoln Center, em Nova Iorque.
Em 1969 dá concertos em vários países da União Soviética e em 1970 é Itália que a descobre, naquela que ficará conhecida como “La follia per la Rodrigues”. A loucura é tal que percorre o país inteiro, só não cantando, como diria, nas cidades onde não havia um teatro. E até o palco do teatro lírico de Milão, o Alla Scala, lhe abriu as portas. Nesse ano vai pela primeira vez ao Japão, onde regressará várias vezes e ganhará uma inesperada, mas fiel, legião de fãs. Por onde passava fazia questão de interpretar temas do próprio país, gravando também discos em várias línguas.
Aquela que em 1959 fora considerada pela revista americana Variety uma das quatro melhores cantoras do mundo, tinha-o finalmente a seus pés. Sabia-o, mas como se vê no imperdível documentário de cinco horas que Bruno de Almeida realizou em 1995, Amália – Uma Estranha Forma de Vida, falava da sua carreira com um orgulho natural e sem falsa modéstia, mas também sem gabarolice. Afinal, limitara-se a cumprir o fado que Deus lhe deu.
César, um amor discreto
Se a vida pública de Amália era tudo menos discreta, a sua vida privada era isso mesmo: privada. Por isso nada se sabe sobre a sua relação com o torneiro mecânico e guitarrista amador Francisco da Cruz, que conheceu quando dava os primeiros passos no fado e com quem se casou com apenas 20 anos, dele se separando três anos depois. Vinte e um anos se passariam – durante os quais manteve um romance de oito anos com Eduardo Ricciardi e foi cortejada, ao que consta sem sucesso, pelo primo deste, o banqueiro Ricardo Espírito Santo – até que se decidisse casar de novo com um engenheiro mecânico brasileiro, César Seabra. Do qual também pouco ou nada se sabe, pois gostava do anonimato e viveu sempre nos bastidores da carreira da mulher.
O casamento foi celebrado a 26 de abril de 1961, no Rio de Janeiro, após seis anos de relação. Nessa altura, Amália anunciou que iria terminar a carreira – ignora-se se por influência do marido ou porque queria ser apenas uma mulher igual às outras –, mas um ano depois regressa a Portugal e grava novo disco.
Na extensa biografia autorizada que escreveu sobre Amália, e que nasceu de longas conversas com a fadista, de quem era amigo, Vítor Pavão dos Santos cita uma frase desta sobre o marido: “Como engenheiro mecânico, é todo virado para o futuro, para as notícias, para a informação. Filma pontes e aviões. A mim, pontes e aviões não me interessam absolutamente nada. Interessa-me é falar sobre a cabeça das pessoas, porque será que fazem isto ou aquilo, interessa-me a poesia.”
Meses depois da morte de César, em 1997, Amália confidenciaria ao Expresso: “O César era muito boa pessoa. Só que não tínhamos nada, nada, nada de parecido…”
Amada até ao fim
Os anos desgastaram Amália, mas a entrega que punha em cada interpretação desculpava qualquer falha na voz. Os seus 50 anos de carreira foram, por isso, celebrados intensamente, levando-a em tournée a Espanha, França, Suíça, Israel, Índia, Macau, Coreia, Japão, Bélgica, Estados Unidos e Itália. Em Portugal rendeu também várias salas, entre elas o Coliseu dos Recreios, e até o elitista Teatro Nacional de S. Carlos, tornando-se a primeira intérprete não lírica a cantar naquele palco.
Em 1994 afasta-se dos palcos, mas o amor do seu público continuou. e até à data da sua morte, a 6 de outubro de 1999, vendeu 30 milhões de discos, vários deles chegando ao ouro e à platina.
Naturalmente, a esta figura ímpar não faltaram homenagens, entre elas a atribuição de importantes ordens honoríficas em Portugal e no estrangeiro.
No dia da sua morte, o país vestiu-se de luto e foi imensa a multidão que a velou e acompanhou o seu cortejo fúnebre da Basílica da Estrela até ao Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Em julho de 2001, reconhecido o seu imenso contributo para a cultura portuguesa, os seus restos mortais foram trasladados para o Panteão Nacional, que pela primeira vez acolheu uma mulher.
No próximo dia 5 a fadista será evocada na Altice Arena, em Lisboa, no espetáculo Amar Amália – 20 Anos de Saudade, com a participação de Dulce Pontes, Simone de Oliveira, Paulo de Carvalho, Marco Rodrigues, Amor Electro, Aurea e Jorge Palma. Este espetáculo será depois levado ao Pavilhão Multiusos de Guimarães, a 8 de novembro, e ao Pavilhão Rosa Mota, no Porto, a 16 de novembro.
Porque em 2020 se assinalam os 100 anos do seu nascimento, as comemorações continuam até ao final do próximo ano, divulgando Amália por todo o país com concertos, uma exposição retrospetiva itinerante, uma grande gala do centenário, tertúlias, debates e eventos culturais promovidos pela Fundação Amália Rodrigues, que mantém vivo o legado da fadista na casa onde esta viveu e morreu e que ofereceu aos portugueses na forma de museu. Um lugar de memórias a ser descoberto por todos aqueles que quiserem saber um pouco mais sobre a nossa maior cantadeira.